A ilha de Sacalina
Quando Tchékhov, então um jovem médico, partiu para a ilha de Sacalina em Abril de 1890, ninguém compreendeu as suas motivações. Ele próprio, incapaz de se explicar, falou de 'mania sacalina'. Nabokov fez-se eco dessa perplexidade - Normalmente, os críticos que escrevem sobre Tchékhov repetem que acham de todo incompreensível o facto de, em 1890, o escritor ter empreendido uma viagem perigosa e fatigante à ilha de Sacalina para estudar a vida dos condenados aos trabalhos forçados. Trata-se, de qualquer modo, do episódio mais estranho da vida de Tchékhov. Tendo decidido investigar aquele lugar maldito, pôs-se a caminho, em condições mais do que precárias. Decidira não se apresentar como jornalista e não possuía qualquer carta de recomendação ou documento oficial. Após dois meses e meio de viagem extenuante, o mais provável era ser obrigado a regressar. Enfrentou o frio, a chuva, as inundações e os incêndios, e finalmente lá estava, ao largo da Sibéria, a ilha de Sacalina - Em redor o mar, no meio o inferno. (sinopse da edição portuguesa da obra)
Comentários
APPIO
31/07/2019 - 11:42
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Sacalina
Ao terminar de ler a 461ª página do livro “A Ilha de Sacalina”, além de um tanto estupefato, ficou uma pergunta: o que esse autor tem a ver com o autor do “Jardim das Cerejeiras” e das “Três Irmãs”, as duas obras que conhecia de Tchékov, inclusive as análises de Chomski sobre o estilo do teatro puro?
Continuei me perguntando: que raio teria levado um médico e escritor de razoável sucesso, burguês de classe média, a percorrer 10 mil quilômetros, através de uma região cujo sinônimo é castigo (Sibéria), numa época cujo meio de transporte mais moderno era uma “Maria Fumaça” e o resto era o que havia de pior que poderia se mover sobre o gelo.
Tal sacrifício seria pouco justificável para se chegar a uma aprazível “Colônia de Férias”.
Agora, fazer todo esse sacrifício para chegar a uma “Colônia Penal”, e por cima “Russa”, do século “XVIII”, ficar lá por “três meses”, e ainda por cima por vontade própria? Realmente, para mim isso beira a insanidade. É de se perguntar: estaria ele em missão secreta, a serviço de uma ONG (da época) dissimulada e oculta? Estariam já em ação as forças da revolução de 1917? Seria o relatório instrumento da subversão para acusar o regime czarista?
A ilha de Sacalina me fez lembrar algumas coisas. Como o “Arquipélago Gulag”, de Aleksandr Soljenitsin, lido nos anos 70 na época do apogeu da URSS (de difícil digestão e que mostrava certa atração dos russos por prisões). E a frase no portal do “Inferno” de Dante (que também constava na entrada do Carandiru, como me contou um ex-funcionário). E da “Estação Carandiru” do Dr. Dráuzio Varella. Literariamente, a narrativa (trágica) sobre as pessoas e o detalhamento sobre a geografia em tom de relatório, lembrou-me dos “Os Sertões”. Mas nada, nem de longe, mostrou-me tantos comportamentos e sentimentos e tão horríveis (não acho adjetivos para qualificá-los). Obras de ficção não conseguem retratar tamanha miséria – miséria não só no sentido material, mas moral.
O estilo de relatório, as digressões estatísticas, as descrições “frias” (sem ironia) o distanciamento emocional (intencional?) do narrador, a aparente insensibilidade diante de tanto absurdo me causavam estranheza.
Várias vezes, durante a leitura, eu parava e me perguntava se realmente aquilo que eu lia seria real. Mais mal estar pelo que eu lia era saber que aquilo tudo era realidade. Nenhum recurso foi usado para dramatizar a narrativa. Apenas relatava. E quem lesse que julgasse o nível a que pode chegar o ser humano.
Brutalidade, sadismo, maldade, selvageria, humilhação, desgraça, perversão, crueldade, canalhice, desespero, corrupção, aliciamento, degradação, loucura, depravação, indolência, desprezo, obscenidade, prepotência, negligencia, desleixo, miséria, miséria, miséria material e espiritual...
E qual a mensagem me deixou? Que aqui e agora ocorrem coisas semelhantes, após mais de um século de “desenvolvimento social”. Talvez a gente se acostume com a farsa. E talvez não queira nem ver que tudo isso ocorre sob a burocracia estatal que ampara os seus iguais, aqueles que “administram” a coisa pública, aquela classe de cidadãos acima do bem e do mal, que têm direitos adquiridos e prerrogativas irremovíveis. Quanto mais poder tem o Estado, mais sofre o cidadão. Se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente.
Se eu defender a pena de morte eu serei execrado. Mas, a morte instantânea não seria preferível a tanta miséria humana, e por tanto tempo? Não seria eliminada boa parte daquela casta “executora” da justiça?
Eu preferia ser enforcado a cumprir pena em Sacalina, porque lá “se ultrapassou os limites da degradação humana”.
quatro primeiros