Já podeis da pátria filhos
Em Já podeis da pátria filhos, Ubaldo subverte a gramática tradicional para falar de pescadores exagerados, festas de debutantes, turistas assanhadas, meninos brincando de médico, políticos corruptos e amantes do futebol que não descartam uma ou outra safadeza para vencer uma partida.
São relatos em que o autor conta casos da ilha de Itaparica e sua gente. São histórias cômicas, fantasiosas e por vezes líricas, de um observador dos modos e costumes do povo brasileiro. No conto que abre o volume, Alandelão, um touro reprodutor francês, que 'vivia todo ventilado e cheio de nove-horas', é levado ao ar livre por peões ansiosos pelo momento em que ele vai deixar a vida de inseminações artificiais de lado para se entreter com uma vaca no pasto. Em O santo que não acreditava em Deus, um pescador se encontra com o Criador. No texto que dá título ao livro, Ubaldo narra uma pelada de futebol entre locais e estrangeiros. E, em Era um dia diferente quando se matava porco, um menino acompanha o pai no sacrifício de uma porca e procura se manter firme, apesar da violência e do sangue.
Comentários
APPIO
07/09/2022 - 17:57
permalink
JÁ PODEIS DA PÁTRIA FILHOS
De João Ubaldo Ribeiro
Lembrei-me do tempo em que tinha de ler Sertões de Euclides da Cunha, Sonetos de Camões, o Defunto de Eça de Queiroz, sob a orientação implacável da professora de literatura da língua portuguesa, a inesquecível Dona Bárbara Vasconcelos, que ainda nos fazia ler Castro Alves, Lima Barreto e, é claro, o “seu” Machado de Assis e outros tantos no meu longínquo Curso Clássicos, que nem existe mais.
O curso não existe mais, mas as regras da Dona Barbara ainda continuam na minha cabeça. Enfatizava que ao ler qualquer obra deveríamos sempre nos ater a duas coisas à forma e ao conteúdo. E através da observação desses dois aspectos poderíamos compreender melhor as obras e, se possível, desenvolver o gosto pela leitura. Já se passaram 60 anos e ao ler este “Já podeis da pátria filhos” essas lições me vieram à lembrança.
O conteúdo dos contos que compõem o livro é sobre acontecimentos corriqueiros ou mesmo banais próprios de ocorrerem em pequenas comunidades, (local: Itaparica-BA), numa época indeterminada (porém, pelas descrições, presumidamente inicio da segunda metade do século passado). Não chegam a ser empolgantes, mas todas são boas anedotas (anedota no seu sentido original e não no sentido comum de piada), pois retratam personagens e situações que seriam, ou poderiam ser próprios dessa comunidade, ou realistas ou fantásticos, mas sempre hilários.
Mas o que mais empolga e a forma da narrativa. Nela, o narrador de cada conto nos passa a idéia de ter sido um personagem contemporâneo, testemunha ou mesmo partícipe dos fatos narrados, o que nos dá a sensação de um certo realismo (até mesmo der um realismo fantástico), inclusive pela objetividade da narrativa, nos passa a sensação da ficção ser realidade.
A refinada técnica do autor, a cada conto, adota uma linguagem ou um “jeitão” mais ou menos diferente de escrita, caracterizando os diferentes “narradores” do livro, fazendo lembrar a técnica de Guimarães Rosa no “Grande Sertão”. Naquele como neste livro o texto parece ser mais adequado a ser ouvido do que lido. Aliás, João Ubaldo Ribeiro não atende às exigências da linguagem culta ou literária, escrevendo em português coloquial, e coloquial como o falado (presumidamente) pelas pessoas simples de Itaparica daquele tempo, o que seria o mais apropriado ou adequado aos narradores dos contos, pois eles eram personagens dos fatos narrados, o que nos acentua a sensação de veracidade.
O humor - hilário, crítico, inusitado - está presente no conteúdo de todos os contos. “Personagens” como o touro frances reprodutor inapetente - o Alandelão; o Jegue mais do que apetente; o robalo suicida; a Patativa Prateada, e dezenas de outros, são incrivelmente criativos e caricatos. E as situações criadas, absolutamente inusitadas como no Boi Insidioso, no Santo que não acreditava em Deus e outras revelam a criatividade do autor, que também não deixa de criar situações para fazer críticas, como no Magnata do Voto, no Pensamento, palavras e obras...; sem falar nos nomes próprios dos personagens, uma coleção de incrível de nomes esquisitos, um mais engraçado que o outro.
Mesmo que para alguns possa ser exageradamente realista ou explícito, principalmente nas referencias escatológicas e nas ananatômico-sexuais, a menção a esses temas, recorrentes nos contos, talvez sejam próprios daquelas comunidades e personagens.
Enfim, valeu a leitura por quem conhecia apenas o autor como cronista publicado em jornais (embora cada conto deste livro possa ser considerado uma crônica). E valeu o quanto a minha Professora Barbara me ensinou e que, do céu onde certamente está, me dê ao menos um cinco por este texto.
quatro primeiros