Neve na manhã de São Paulo
Romance histórico sobre a arrebatadora história de amor entre Oswald de Andrade e a normalista Miss Cyclone em uma garçonnière no centro da moderna São Paulo do início do século XX.
Uma das histórias mais encantadoras – e menos contadas – do modernismo paulista é a da garçonnière mantida por Oswald de Andrade entre 1917 e 1919 no centro de São Paulo. Por ali passaram figuras que anos depois transformariam a cena literária e artística brasileira, tais como, Guilherme de Almeida, Monteiro Lobato, Menotti del Picchia, e o desenhista Ferrignac. Eles mantiveram um diário coletivo batizado de "O perfeito cozinheiro das almas deste mundo", no qual esse cotidiano boêmio era registrado em pormenores. No pequeno apartamento da Libero Badaró, jovens amigos se reuniam para discutir literatura, política, ouvir música, fazer saraus e, claro, namorar.
Foi nesses dias que Oswald encontrou uma estudante de dezessete anos com quem se envolveu de imediato. Diferente em tudo das moças que aqueles rapazes conheciam, Daisy, ou Miss Cyclone, logo se integrou ao grupo como se fosse um deles. Esse amor, no entanto, desafiou Oswald de várias maneiras. A presença marcante de Daisy e o romance trágico ficaram claramente documentados no diário. Cabe a Pedro, amigo de infância de Oswald, e o único do grupo que não alcançou a fama nem se tornou escritor, o papel de narrador do drama do qual foi um dos personagens.
A partir de sólida pesquisa documental, José Roberto Walker recria de maneira notável a atmosfera vibrante da cidade de São Paulo no início do século XX. Neve na manhã de São Paulo joga uma nova luz sobre personagens-chave desse período e mostra com brilho como o modernismo paulista – que surgiria com a Semana de 22 – já estava a mil.
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APPIO
03/05/2022 - 10:10
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Neve na manhã de São Paulo
Neve na manhã de São Paulo
De José Roberto Walker
Este livro me surpreendeu.
Minha primeira expectativa era de um romance sobre a cidade, mais histórico que romanesco. Acho que em função do título e capa eu esperava isso (a capa com a rua em que trabalhei num jornal existente na época foi um atrativo). Mas, aí, no início da leitura pareceu-me que se tratava de uma biografia romanceada: sobre Oswald de Andrade. Depois, fui mudando de opinião à medida em que ia lendo.
Na verdade, os primeiros capítulos não me entusiasmaram muito. Senti um tanto repetitivo, detalhado em demasia, sem gerar aquela expectativa sobre “o que será que vai acontecer?”, que nos faz ficar presos à leitura.
Aos poucos, fui mudando. Procurei um pouco mais de informação, li a orelha.
E vi a construção inteligente: o autor que narra os fatos não é o autor do livro, mas um personagem, Pedro, protagonista dos acontecimentos narrados. E é tão efetiva essa transposição “autor-narrador-personagem”, que acabei vendo o Pedro como uma pessoa real, como um repórter que participou da realidade da história e, ao mesmo tempo, e por causa, é o narrador privilegiado.
Mas não é o narrador comumente encontrado porque ele não só discorre sobre os acontecimentos. Ele faz parte e atua sobre os fatos, ele está no enredo.
Enredo que deixa de ser enredo para ser a narrativa do que aconteceu na realidade.
Eu não conheço bem obras do movimento literário do Verismo, mas acho que este livro, elo que me causou, se enquadra perfeitamente nesse estilo.
Pedro, narrador-personagem, adquire vida própria.
Vida que se caracterizou pelo conhecimento e amor pela cidade de São Paulo. Descreve-a com os detalhes de quem viveu naquela época (pelos meus cálculos ele nasceu em 1890) e passou a sua juventude nas duas primeiras décadas do século XIX. Até onde eu pude verificar, descreve com exatidão (conferir nos mapas e fotos contemporâneos) os logradouros, as edificações e outras características da cidade.
Eu cheguei a ver muitos dos prédios que sobraram daquela época, no chamado centro velho da cidade, particularmente na Líbero Badaró, onde ficava o Correio Paulistano, onde trabalhei, 30 anos depois dos acontecimentos narrados no livro. Identifiquei-me até quando fala do cheiro ou dos cheiros da cidade. Eu também achava que lugares tinham cheiros.
Mas Pedro tinha um amigo desde a infância, no primário, e se propôs a biografar a sua adolescência e juventude. Esse amigo era Oswald de Andrade.
Aquele Oswald de Andrade que a maioria das pessoas conhece como um dos líderes do movimento modernista com participação ativa na Semana de Arte Moderna de 1922, casado com Tarsila do Amaral, fundador do Movimento Antropofágico, autor de livros, peças de teatro e manifestos, jornalista, ativo militante político comunista, e tido como brilhante e polêmico intelectual.
Mas este romance, para mais uma surpresa minha, não trata apenas da biografia do Oswald de Andrade, e a partir desses atributos elogiosos.
Pedro narra a juventude de Oswald de Andrade.
Ao fazê-lo - e me parecendo ser absolutamente realista no conteúdo e versista na forma – revela uma homem cujo comportamento em nada condiz com os elogios que lhe atribuem e dignificam.
Pedro relata o interesse de Oswald de Andrade por meninas, sim, meninas e de menos de 13 anos. E esse seu interesse inconfessável revela, no mínimo, um deplorável comportamento de um pedófilo.
Seu interesse por uma menina de seis, repito, seis anos! Não tinha nada de paternal (haja vista, como narrado, a “possibilidade de escândalo”). Vulgaria verba: era um tarado!
As atitudes, as falas e o comportamento de Oswald de Andrade retratado pelo seu amigo fiel, Pedro, revelam traços de uma personalidade realmente deplorável.
É fácil identificar, nas atitudes e palavras dele em relação ao pai, às mulheres, ao filho e às pessoas em geral de seu convívio, ser ele: machista, egocêntrico, egoísta, presunçoso, prepotente, falso, ardiloso, mentiroso, desrespeitoso, fútil, ingrato, amoral, dominador, inconseqüente, pródigo, perdulário, imprevidente, irresponsável, pedófilo, predador sexual... (não se trata de opinião: é possível identificar nos fatos narrados cada uma desses atributos). Sem trocadilho, querendo ser um libertário, revela-se um libertino.
Por isso, realmente, o biografado não me inspirou nenhum sentimento positivo e nenhum respeito.
Entretanto, a narrativa dos encontros do grupo de jovens, na academia, na garçonière e nos bares, torna o livro interessante para se conhecer os valores e estética da época: valores de uma sociedade conservadora, machista, tradicionalista, elitista, ruralista, convivendo numa cidade agora em confronto com valores de uma população imigrante, industrialista, mercantilista, urbana, pluralista, capitalista e socialista. Este foi recorte social apresentado.
Era a modernidade que chegava e trazia o “boom” de desenvolvimento à cidade que começava a crescer e se tornar a maior cidade do país.
É esse entorno do biografado que torna o livro interessante.
São as inúmeras personagens citadas, aliás, mais conhecidas como nomes de ruas e de escolas, que nos são apresentadas como reais e vivas.
São fatos detalhadamente relatados que dão realismo ao romance, e nos levam a acreditar que cada detalhe tenha sido verdadeiro: uma casa, um móvel, um gesto, um diálogo...
O retrato da cidade física e socialmente descrita é admirável. A narrativa dos fatos é que os torna relevante: a geada, o frio, a névoa, a chuva que cai; a rua, a calçada, o prédio, o corredor, o elevador, a iluminação; os bares, suas as mesas e os freqüentadores; o trem, a estação, os horários e paisagens; as passeatas, os piquetes, a greve...
Contar a cidade torna o romance mais interessante do que revelar as patacoadas do amigo do Pedro. Estas servem para expor o comportamento de determinado gênero de uma classe social mais privilegiada. Os “prazeres carnais” dos homens – jovens, adultos, e mais idosos – e somente a estes permitidos - travestiam-se sob forma de romances, amores e paixões. Falsas características idílicas para justificar comportamentos imorais.
Mas eis que surge um personagem feminino, que passa a dominar. Daisy, normalista, transforma-se no novo objeto de conquista do companheiro de Pedro. Porém, ela é diferente. De família conservadora igual a tantas outras tem uma personalidade forte, inteligente, mentalmente ágil, culta e apesar da sua juventude (menor de idade, mais uma!) tem opiniões formadas, sabe envolver para ser seduzida. E o foi! Sem detalhes. Pois Pedro era um cavalheiro.
Oswald de Andrade apaixona-se por ela, e começa a segunda parte da narrativa, esta sim focada nos lances dessa relação, nos sentimentos atitudes e loucuras dos personagens. O que foi real parece até ficção.
Eu vi outro diário, real, feito numa outra garçonière, com escritos (reais) feitos por pessoais reais, inclusive o Oswald de Andrade, e a mulher que o freqüentava e parece que a todos fascinava era a Pagu, mulher real. Esse diário “Diário”, que me deixou também fascinado, o vi e li na biblioteca pessoal do meu amigo Regastein Rocha – dono da Raízes Editora. Talvez o diário deste romance tenha se inspirado naquele.
Daisy ao mesmo tempo era tudo que Oswald e seu grupo veneravam: a liberdade, a inteligência, o humor, a sedução. Entretanto, ao mesmo tempo, seu machismo os impelia a contestar esses valores, imaginem, numa mulher.
O que foi o interesse por apenas mais uma conquista acaba se tornando uma paixão, e uma dependência emocional para Oswald de Andrade. Entretanto, ele não se liberta de seu caráter, possessivo e egoísta. Consegue ter uma vida dupla, usando de todos os ardis para, não apenas conquistar a jovem, mas acabar por ser aceito pela família dela que desconhecendo a sua vida, tanto pregressa quanto a contemporânea aos fatos, acaba por aceitá-lo.
A partir daí, os capítulos tornam-se mais interessantes, e a trama se desenvolve mais tensa. A menina, então adolescente, buscando uma vida de realizações intelectuais e liberdade e inserção numa classe social mais elevada, acaba por se situar na mesma condição das outras meninas da sua origem, seduzidas e desonradas.
Os últimos capítulos se não são sentimentais, despertam sentimentos, sentimentos de afeto pela Miss Ciclone – o apelido de Daysi – que de ciclone nada mais tinha, e que para atender o egoísmo de Oswald de Andrade, resta inerte no seu último leito. E não um leito de amor.
Amor mesmo é revelado pelo escudeiro do Oswald de Andrade. Pedro, por fim, confessa ao leitor os seus sentimentos. Sentimentos nobres, talvez de verdadeiro amor. Um amor terno, que poderia aquecer o Ciclone. Não aquela paixão que o seu Dom Quixote dizia ter, mas que se revela mais fria do que a Neve na manhã de São Paulo.
quatro primeiros