Livro57
Numa e a Ninfa
Data do debate:
quinta-feira, 8 de Abril de 2021 - 19:00
Número de páginas:
214
Ano da primeira publicação:
1915
Publicado em 1915 como folhetim pelo jornal A Noite, este romance satírico de Lima Barreto reproduz de forma crítica o ambiente político do governo do marechal Hermes da Fonseca ao contar a história de Numa Pompílio de Castro.
Filho de um pequeno empregado e à custa de muito esforço, Numa fez-se bacharel em direito, embora não dispusesse de qualquer pendor ao estudo ou às letras jurídicas.
Interessado apenas nos cargos e proventos que o título lhe permitiria alcançar, casa-se com Edgarda Cogominho, filha do chefe da oligarquia local, e elege-se deputado graças à influência do sogro. Reconhecido e empossado, Numa não deu sinal de si durante o primeiro ano e meio de legislatura, enquanto a esposa vive mergulhada em leituras, desgostosa da modéstia intelectual de seu marido. Mas o "genro do Cogominho" surpreende a todos e deixa para trás seu epíteto quando profere na câmara um discurso inesquecível e o casal finalmente recebe a admiração de que se via digno.
Comentários
APPIO
05/04/2021 - 11:45
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Numa e a ninfa
Numa e a ninfa
De Lima Barreto
Ter lido O Triste fim de Policarpo Quaresma foi o motivo para eu votar neste Numa e a ninfa. E a edição que li é a da Companhia das Letras, de 2017, com Prefácio de João Ribeiro e Apresentação de Antonio Arnoni Prado. Quebrei meu hábito de, antes de ler um livro, nada ler sobre ele. E arrependo- me. O Prefácio e a Apresentação foram excelentes em analisar e esmiuçar profundamente a obra, mas também eficientes em me antecipar o enredo e retirar a possibilidade de me surpreender - o que torna um texto atrativo para mim. Não quebrarei mais meu hábito. Mas vamos ao Numa.
O sentido crítico e a ironia, que me atraíram no Policarpo Quaresma, já estão presentes no primeiro parágrafo de Numa. A crítica mordaz aos políticos e a política nacionais e ao radicalismo - mas não só a estes, mas ao comportamento das pessoas comuns, dão um retrato não só da época, mas, a meu ver, do próprio caráter das elites e do povo – características que parece ser mantidas até aos dias atuais.
Os vários personagens e o contexto da história de Numa transitam numa época (real), em que a República ainda procurava se impor, o presidente era o marechal Hermes da Fonseca (ex-Ministro da Guerra, sobrinho do Marechal Deodoro da Fonseca - o proclamador da República), membro da elite militar que se contrapunha a elite civil e venceu as eleições de 1910 derrotando Ruy Barbosa. Revoltas (ex. a da Armada, a do Contestado), rebeliões e intervenções nos Estados comandadas por militares eram constantes, reforçando a importância dos militares e suas ideologias – muito influenciadas pelo Positivismo - que culminou na famosa Revolta dos 18 do Forte, no Tenentismo e nas Revoluções de 24,30, 32, 64... e tem reflexos até hoje. Até mesmo a construção da ferrovia que aparece no livro, parece se remeter a realidade. A polêmica Estrada de Ferro Madeira-Mamoré tinha sido inaugurada poucos anos antes do livro.
Sem dúvida Numa e a ninfa é um retrato político da época: época dos coronéis, das oligarquias, dos donos de territórios, de eleições fictícias. Os Estados e cidades da ficção podem ser encontrados na realidade (até hoje), principalmente nas regiões leste-norte-nordeste. Os vários personagens parecem ser usados para retratar os tipos ou típicos brasileiros da época na Capital Federal. Até a transferência da Capital para Brasília, essa era real característica do Rio: todos querendo uma “boquinha”, ou um “cabide” no governo, a quantidade enorme de funcionários públicos, que até marchinhas de carnaval (anos 50) ironizava a situação, como exemplo a “Maria Candelária”.
Numa, o personagem central (é central?), parece ser uma elegia à mediocridade, talvez mais uma crítica irônica ao mérito dos poderosos: as relações “familiares” (ou de outro tipo), as amizades, as “indicações”, os “cartuchos”, as “chaves de galão”, os QIs, os “padrinhos”... nunca a competência, capacidade, ou probidade eram valores para ocupar um cargo público. O importante “é seu faro de adivinhar onde estava o vencedor” e colocar-se ao seu lado. Como se vê nada mudou.
Como cronista do seu tempo, Lima Barreto nos dá um bom retrato do comportamento social/moral da época: os discretos e camuflados locais de encontros (não havia motéis), os poderosos com suas amantes oficiais, as viúvas ávidas de compensações, o poder das amantes, os capricornianos assumidos. As relações maritais da época me pareceram definidas pelo autor numa frase: era o “ócio matrimonial” (pg. 82). Mas, o encontro da ninfa e o primo na garçonière camuflada parece não compensar esse ócio, pois lá estão ausentes emoções, paixão, desejo. (pg. 119).
Considerado pré-modernista e realista, de romântico ou poético o autor parece se revelar só ao descrever natureza ou arquitetura: “veio a pé bordando o mar. O céu estava povoado pelo luar... as luzes esféricas de Villegagnon brilhavam muito azuis no seio do luar prateado. As montanhas negras... eram muralhas, ameias de um castelo fantástico em cujos torreões sentinelas vigiavam a muda obscuridade...” Ou então” músicas fanhosas e cansadas esforçavam-se por dar compasso... os carros dormiam às portas dos clubes... o Passeio Público esperava o dia para o encontro dos amorosos e dos namorados inocentes”. Ou ainda, o conteúdo induzindo à forma: “O acaso que traçou a cidade parece ter deixado aqui e ali pequenas ruas, travessas, becos, próprios aos amores que não querem ser suspeitados. Ao lado das ruas principais, ficam o seu sossego e discrição para asilar os amorosos, evitando-lhes grandes rodeios e afastando as suspeitas...” (pg. 115)
A estória de Numa e a ninfa tem várias (muitas) personagens, e algumas delas parecem não ter função significativa no enredo. Quero crer que muitas delas serviram mais para o autor retratar o sistema de relações e correlações do poder e também para revelar tipos (pessoas) comuns da cidade, compondo o quadro social quando, por exemplo, descreve o que se passava na Rua do Ouvidor (parece que tudo acontecia nessa rua), nos cafés e restaurantes, e aos descrever ruas, bairro e zonas, ou ainda ao nos dar os contrastes: da moradia em simples pensão de um alto funcionário, ou outro em vestes de gala viajando de bonde, e isso com a maior naturalidade.
Considerado pré-modernista, um realista, o autor se revela romântico ou poético só ao descrever natureza ou arquitetura: “veio a pé bordando o mar. O céu estava povoado pelo luar... as luzes esféricas de Villegagnon brilhavam muito azuis no seio do luar prateado. As montanhas negras... eram muralhas, ameias de um castelo fantástico em cujos torreões sentinelas vigiavam a muda obscuridade...”. Ou então “músicas fanhosas e cansadas esforçavam-se por dar compasso... os carros dormiam às portas dos clubes... o Passeio Público esperava o dia para o encontro dos amorosos e dos namorados inocentes”. Ou ainda, o conteúdo induzindo à forma: “O acaso que traçou a cidade parece ter deixado aqui e ali pequenas ruas, travessas, becos, próprios aos amores que não querem ser suspeitados. Ao lado das ruas principais, ficam o seu sossego e discrição para asilar os amorosos, evitando-lhes grandes rodeios e afastando as suspeitas...” (pg. 115)
Por outro lado, algumas características do texto me pareceram talvez mais descuido do que estilo, como certas incoerências: Ex. o cunhado na Europa- pg. 66- quando a esposa não tinha irmã; após o jantar era meio da tarde. A narrativa às vezes parece ser truncada, ou ainda o uso de pronomes confunde sobre quem era o sujeito. Vou arriscar um palpite: talvez o que parece descuido seja porque o texto originalmente fora escrito para o jornal, como um folhetim em capítulos. A velocidade para publicação em jornal e a retomada semanal da redação de capítulos talvez sejam a causa da aparente falta de continuidade e menos apuro na redação ou revisão.
A impressão que me deu foi a de que mais importante do que contar uma estória, o autor quis fazer um retrato realista da sociedade do seu tempo. E como excepcional jornalista, conseguiu reportar não só a política e sociedade de seu tempo, mas a do nosso tempo atual. A cada página podemos identificar os comportamentos e valores (ou falta deles), principalmente das elites e da política, dos dias atuais. Passados mais de cem anos, tudo mudou para que continuasse tudo continuasse o mesmo.
quatro primeiros