Livro55
Grande Sertão: Veredas
Data do debate:
quinta-feira, 11 de Fevereiro de 2021 - 19:00
Número de páginas:
437
Ano da primeira publicação:
1956
Publicado originalmente em 1956, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, revolucionou o cânone brasileiro e segue despertando o interesse de renovadas gerações de leitores. Ao atribuir ao sertão mineiro sua dimensão universal, a obra é um mergulho profundo na alma humana, capaz de retratar o amor, o sofrimento, a força, a violência e a alegria.
Comentários
APPIO
09/02/2021 - 21:13
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Grande Sertão:Veredas
Uma obra de fôlego. Ou melhor: uma obra de tirar o fôlego. Ou tirar o sono.
Do autor, tinha lido o Sagarana. E do Grande Sertão, Veredas, para as aulas de literatura brasileira, há meio século, li o resumo da síntese do sumário da sinopse da resenha do livro. Eu fazia de conta que enganava a Professora Bárbara e ela fazia de conta que acreditava. Mas há uns poucos anos, sentado num banco de jardim, na frente da estaçãozinha de trem da cidade de Cordisburgo, olhando para a casa onde nasceu e se criou o Guimarães Rosa, depois de andar por aquela cidadezinha parada no tempo, fiquei ali, então eu parado um bom tempo, pensando e imaginando como seria aquele lugar no começo do século passado, quando ele ali nasceu, e ali cresceu. O Brasil tinha deixado de ter Imperador há menos de 20 anos. Aquela estaçãozinha há décadas desativa, ainda era nova. E passageiros lotavam a Maria-fumaça – então uma modernidade. Se aquilo ainda hoje é o interior atrasado do Brasil, como seria há 100 anos?
Acho que seria como é descrito no romance: um país de miseráveis, analfabetos, submissos, uns poucos ricos e poderosos, donos de coisas e de gentes como os senhores feudais, uma economia improdutiva, uma organização política senhorial, onde a vida pouco valia, e a violência era a virtude dos fortes e a fé e a crendice o refúgio dos fracos.
Olhando e refletindo sentado naquele lugar, achei que estava começando a entender aquele Sertão, aquele do autor de Sagarana. Lendo o Grande sertão agora, ledo engano cometi. Foi uma surpresa. O hábito de ler com um dicionário à mão, junto com o caderninho de notas, mostraram-se impraticáveis, irritantemente inúteis. Se os usasse, estaria ainda na décima página. Pela forma narrativa, achei que aquele texto não era para ser lido. Mas ouvido. E acabei por perceber quanto havia de métrica, modulação e rimas na fala do Riobaldo. Não dava para apenas ler. Passei a lerouvir sem parar para pensar. Observando a forma e o conteúdo. E fazendo ilações, lembrei-me de outro sertão: o do Euclides da Cunha com a sua infindável nomeação das espécies botânicas. Só que ele o fazia como um frio botânico. Mas Guimarães Rosa o fez como um poeta. Nos “Sertões” as coisas apenas eram. Mas no “Grande Sertão” as coisas além de ser, elas significavam, tinham sentido – às vezes mais de um, tinham beleza e importância emocional. Euclides da Cunha era o “viajante” a documentar e descrever um novo mundo. Guimarães, encarnado Riobaldo, é o co-habitante nesse mundo e vê e sente de dentro dele.
É simplesmente brilhante a inédita solução: o romance é apenas (apenas?!) uma narrativa, uma só fala, um monólogo de mais de 500 páginas. E o ouvinte – nós – não dá um piu, não diz nenhuma palavra, não emite nem um som. E o único narrador, ou falador, não pára nem toma fôlego. Emenda um assunto no outro, um caso no outro, e da primeira até a última palavra é exclusivamente dele toda a fala. Incrível. Às vezes cansou. Mas era difícil parar de lerouvir.
E quanto ao idioma? Em que língua foi escrito? Ou melhor, em qual dialeto? Sentí-me um onagro quando, depois de várias tentativas infrutíferas, vi que palavras usadas inexistiam nos dicionários. Até então, eu pensei que o autor estava resgatando a Língua Geral, uma mistura derivada da língua Tupi com o português (inculto e castiço), falada em várias partes do País, e comum até o começo do século XX em algumas regiões. O “caipira” é uma derivação dessa Língua Geral, e achei que as palavras do narrador era uma restauração dessa Língua. E só então, e aí buscando referencias, é que soube que o autor além de, é claro, usar a forma falada naquela região, inventou um monte de palavras e expressões. Inúmeras. Curiosamente: falsas, elas dão caráter de veracidade à fala.
Outras ilações me ocorreram. A enormidade de nomes próprios e os vários nomes do mesmo personagem me lembraram os Russos. A presença constante do demônio e, sobretudo a venda da alma para o satanás, lembrou-me de que esse tema é recorrente. Há histórias de violeiros que o fizeram (a de um do Mississipi) e o mito de Paganini, e a famosa história de Fausto (Goethe) e outras antecessoras. Entretanto, o que me parece autêntica é a crendice do caboclo, seja sua inocência ou ignorância. A sua fé nos santos católicos se contrapõe à crença na presença real e o medo do demônio (diabo, satanás, ou outros infindáveis nomes): Deus e o diabo...
Ao menos para os padrões da estética romântica Guimarães Rosa apresenta um herói. Porque é um herói contraditório. O Riobaldo é ao mesmo tempo valente e covarde. Tem a coragem de enfrentar faca e bala e a insegurança de decidir o caminho a seguir. É humilde e pretensioso. É dúbio ao querer mandar e a não saber como. É ignorante e filosofo com reflexões tão profundas.
Ele é sonhador e realista, almeja um ideal, mas não ignora o agora e à hora. É um solitário, mas ao mesmo tempo gregário. É nômade por ação, mas sedentário por desejo.
E, para finalizar, um pouco de humor.
O que lhes pareceu o comportamento do másculo Riobaldo em relação ao Reinaldo ou Diadorim? Teria o Guimarães Rosa promovido a ideologia LBTGeETC? Seria ele um precursor de apoio ao movimento?
Revelar só no finzinho da obra que Diadorim de fato não era Reinaldo estava originalmente previsto? Ou essa revelação teria sido para evitar maiores reações machista?
Naquela época, não existia essa coisa de sair do armário. Mas que Riobaldo estava saindo da cristaleira, estava.
Riobaldo, de fato, era machão... pero no mucho.
quatro primeiros