Livro47
A menininha do Hotel Metropol: Minha infância na Rússia comunista
Data do debate:
quinta-feira, 14 de Maio de 2020 - 19:00
Título original:
Никому не нужна. Свободна.
Número de páginas:
307
Ano da primeira publicação:
2006
Livro de memórias de uma das mais importantes escritoras contemporâneas descreve sua infância e juventude sob o regime stalinista.
Liudmila Petruchévskaia nasceu no Hotel Metropol, na mesma rua do Kremlin, sede do governo russo, em uma família de intelectuais bolcheviques que perderam grande parte de seu status social depois de 1917. Neste livro, a autora narra sua infância extremamente difícil: a constante falta de comida e aquecimento, os períodos passados na rua e as adversidades crescentes enfrentadas pela família.
À medida que ela desvenda sua criação itinerante, vemos, tanto em sua notável falta de autopiedade quanto nas fotografias ao longo do texto, seu instinto feroz e sua habilidade em dar voz a uma nação de sobreviventes. Um livro excepcional que fornece um vislumbre do dia a dia do regime comunista russo.
Comentários
APPIO
13/05/2020 - 12:18
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Comentário sobre a Menininha do Hotel Metropol
A MENININHA DO HOTEL METROPOL, de Liudmila Petruchévskaia
Para o Clube de Leitura do Sírio
Muito difícil comentar a minha hospedagem nesse Hotel. Nesse Hotel Metropol, onde viveu a Menininha, ou Ludmila, ou Nina, ou...
Não fiquei surpreso com a brutalidade praticada pelo Estado Comunista e a conseqüência perversa para milhões de pessoas, porque conhecia um pouco do que foi o Regime Soviético na Rússia e alhures. Mas essa brutalidade praticada contra uma criança e adolescente nunca me foi tão próxima, tão intensa, tão realista e, portanto, tão cruel.
Eu já sabia, desde jovem, o que era o Paraíso Comunista (nem na adolescente me deixei seduzir pela retórica socialista e não me eduquei pelas cartilhas – parece que mantidas até hoje). Textos, depoimentos, matérias históricas, lia várias fontes – claro que inclusive Inglês, Marx, Afanassiev, Trotsky, mas também Soljenitsin - que não teorizava, mas descrevia a realidade dos Estados dominados pelo PCURSS, o grande Arquipélago Gulac, mas todos se referiam à população adulta.
Mas nunca tive contato com a realidade de uma criança tão “amparada” pela tutela soviética.
A história contada por Liudimila – e ao que parece é uma autobiografia, e, portanto presumivelmente verdadeira – não é nem uma saga. É um conto de terror. Tudo de ruim acontece com aquela criança, adolescente, jovem.
Apesar de aquela nova ordem tentar destruir as instituições burguesas, parece que o conceito de família não conseguiu ser destruído: é forte a presença da família na obra. O verdadeiro gênesis descrito no início do livro, já revela essa ligação. Apontar membros de quatro ou cinco gerações não é comum pra quem não dá valor à sua genealogia. Mas também pode deixar o leitor comum meio confuso, por tantos nomes (e prenomes, e apelidos e segundos nomes - essa mania russa de dar mais de um nome à mesma pessoa só não é pior do que os seus nomes impronunciáveis. Não dá pra memorizá-los. Às vezes, nem lê-los!)
É revoltante saber pelo que passou aquela criança. Sem casa, sem cama, sem sapato, sem roupas, sem pai, sem a mãe (por meses/anos), sem proteção, sem carinho, sem afeto, sem respeito, sem dignidade! Aquilo não era vida! Pelo menos, não uma vida humana: para tentar pegar umas casas de batatas para ter o que comer, chafurdava nos lixos como porcos (e ainda escondiam o lixo para impedi-la de catar); era escorraçada como cachorro, pelos vizinhos, por outras crianças, por cidadãos nas filas; a fome até a fazia subir em telhados para conseguir comer algumas migalhas... em disputa com as pombas. É muita desgraça!
A sua família detinha uma coleção de personagens trágicos: tuberculosos, perseguidos, condenados, outros executados ou presos ou assassinados (as), fuzilados, desaparecidos ou “condenados há 10 anos sem direito a correspondência” (ou seja, simplesmente executados, e com isso o Estado declarava não haver ninguém condenado a morte), amputados, e mesmo enlouquecidos... apesar de muitos serem intelectualmente elevados (ou, talvez mesmo por isso mesmo), e havia os reabilitados (depois de cumprirem a condenação por um crime não cometido). Menos mal, para aqueles que “apenas” perderam todos os seus bens e propriedades, desde casa, até um hospital, objetos e... livros.
Essa família tinha uma doença congênita e hereditária: eram “inimigos do povo”. Isso era uma prática salutar para e Estado soviético: se um indivíduo não concordasse, fosse dissidente ou opositor, não só ele era considerado como “inimigo do Estado”, mas toda a sua família – ascendentes, colaterais, descendentes e, portanto, não poderiam receber nenhum beneficio do Estado. Como tudo era do Estado, eles podiam ser privados de... tudo. E, detalhe: “era crime omitir que se era inimigo do povo”. (Detalhe: até hoje, na República Popular “Democrática” da Coréia - Coréia do Norte - toda a população é classificada em três grupos:
Os amigos, os não entusiasta, e os “inimigos”. Como lá.)
Mas como diz a autora, era muito pior que isso: “Inimigos do Povo não era uma expressão vazia, éramos inimigos dos vizinhos, da polícia, dos chefes, dos zeladores, dos passantes, dos habitantes de todas as idades naquele prédio. Não nos deixavam entrar no banheiro, lavar a roupa, nem sabão tínhamos... ao 9 anos não sabia o que era sapato, pente, lenço de nariz, escola, o que era disciplina. Comia quase num instante, com as mãos, enfiando na boca pedaços enormes, e me lambia até ficar tudo limpo. Andava o ano inteiro descalça, (no inverno, sem sair de casa). Não sabia o que era lençol. Piolhos e percevejos roíam minhas mãos do ombro até o cotovelo, e de tanto coçar não sobrava um lugar vivo. Meus pés e minhas mãos eram cinzentos, com fendas ensangüentadas, pus, rachaduras e arranhões, e as unhas eram pretas como de um macaco”.
Estar feliz por poder dormir no chão duro debaixo da mesa, ou dentro de um baú (tirado para lhe cortarem o privilégio!) seria cômico não fosse tão trágico.
O que também achei trágico é a maneira, apenas descritiva, fria, sem revolta ou indignação, sem adjetivos para tanta desgraça. Parece que é insensível. Conta que uns sumiram, outros fuzilados, outros assassinados, outros internados, a todos as condições inumanas impostas, tudo de forma fria como o inverno moscovita. Seria a isenção, ou anestesia intelectual imposta, ou ainda e simplesmente a passividade por se tornar corriqueira, o que seria miserável se fosse raro. Aliás, o uso incontável da voz passiva para mim reflete aquela realidade: as pessoas não eram “sujeitos”, apenas “objetos” do “sujeito oculto” presente em tudo: o Partido e o Estado.
Por outro lado, pareceu-me que o livro não tem o compromisso com a descrição cronológica e nem com certa unidade narrativa. A partir de determinado capítulo (Cisne agonizante), fiquei confuso, pois teatro, faculdade, trabalho se envolvem sem cronologia (aparente). Mas surgem elementos menos trágicos, mas nem por isso tão felizes. Seria reflexo da infelicidade materna? Do pai ausente? Da decepção? Da mãe com o serralheiro com sua caixa de ferramentas? A autora relata os amores de Nina (ela?) - não tão românticos, mas bem menos agressivos do que as tentativas de estupro - platônicos (professor) e os não platônicos (o dos beijos agressivos e banguela!) – e se completa com a presença repelida de uma patética personagem homossexual. Nesse aspecto, fica estranho o sentimento que nutria por quem a perseguiu e tentou violá-la: Complexo de Estocolmo?
O que parece permear aquela vida é a permanente sensação do provisório, da angustia do simplesmente estar, e da ânsia por uma chance de “transformar o destino” (como na descrição da seresta), o que impõe a permanente necessidade de partir, onde o importante não era o “para onde”, mas “simplesmente partir”.
As conseqüências parecem estar presentes na permanente rebeldia da menininha, adolescente, jovem e adulta. Rebeldia que permeia todos os seus enfrentamentos, contra pessoas, comportamentos, idéias, ordenamentos, valores. A agressividade, a irreverência, e a acidez da autora permeiam no último capítulo (Em lugar de uma entrevista), onde também mostra toda a erudição e relacionamentos com a intelectualidade.
Para terminar algo não literário, mas fotográfico: nas fotos a “menininha” e a jovem, parecem destoar das desgraças que sofreu: era bonita, atraente, elegante... fake news bolchevista?
E na imensidão de coisas horríveis narradas, pesquei algumas frases que deixo para reflexão:
“UMA PESSOA É A SUA MEMÓRIA”
“A FELICIDADE É CONQUISTADAPELA PRIVAÇÃO”
“SÓ A SEPARAÇÃO GERA A POSSIBILIDADE DO ENCONTRO”
“A CRIAÇÃO (DE UMA CRIANÇA) É UMA LUTA DE CONTRADIÇÕES”
(É um eterno problema) “VIVER ENTRE PESSOAS QUE NÃO PRECISAM DE VOCE”
“A CIDADE ERA A PROFUNDA ENCARNAÇÃO DA MELANCOLIA”
“BONECAS SÃO DEUSAS OBEDIENTES.”
quatro primeiros