O Capote e outras histórias
"Todos nós saímos do Capote de Gógol" - a famosa frase de Dostoiévski alude ao papel fundamental desempenhado pela obra de Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852) no desenvolvimento da literatura russa a partir do século XIX.
Humorista, dramaturgo, prosador e polemista, seria sobretudo graças a suas narrativas breves que o autor de Almas mortas e O inspetor geral atrairia a atenção da crítica e influenciaria para sempre os rumos da prosa russa e universal. Organizado e traduzido diretamente do russo por Paulo Bezerra, que também assina o posfácio, este volume apresenta ao leitor um panorama geral da obra gogoliana, ao trazer, ao lado de algumas de suas histórias mais conhecidas ("o capote", "O nariz" e "Diário de um louco"), duas narrativas "folclóricas", do ciclo ucraniano ("Viy" e "Noite de Natal"). Se nas primeiras o cenário é São Petersburgo e os pequenos funcionários da burocracia czarista e, nas segundas, o universo rural com suas lendas e personagens míticos, em todas prevalece o humor, o tom fantástico e a genialidade narrativa de Gógol, nesta sequência de verdadeiras obras-primas.
Comentários
APPIO
01/11/2019 - 19:55
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O Capote e outras histórias
O Capote e outras histórias – Nikolai Gógol
Um gozador. Um grande gozador. Mas um gozador com maestria. Com uma capacidade de nos envolver numa narrativa da qual, mesmo sabendo que não nada vai acontecer, continuamos grudados nela. Só que acontece. E da forma mais insólita. Acontece o inesperado, o fantástico, o sobrenatural.
Sempre pensei Gógol naquele ambiente gelidamente russo do grande império czarista. A imagem que eu tinha dele – a de um realista (de realidade e não de realeza) se confirma nestes contos pela mordacidade de suas críticas dos costumes da sua época, pela descrição detalhada e substantiva dos lugares, das coisas e das pessoas. Sua descrição dá vida e humor - à narrativa e até proporcionando curiosidades, como os tipos de classificados publicados nos Pravdas da época. Mas o bom funcionário já identificava e proibia a. “fake-news”.
O estilo narrativo, direto e seqüente oferece uma leitura fácil. O seu jeito de contar é interessante: o narrador, de repente, nos chama a atenção para algo, como se fosse um interlocutor presente, que sai da estória e senta-se ao nosso lado para nos atentar à determinada observação. É curioso.
Curioso é como Gógol nos traça o estereótipo do homem comum da sua época, principalmente o do funcionário público e, através dele, do poder da “nomenklatura” czarista e da submissão bovina ao poder. Com esse realismo crítico nos mostra como eram os costumes, os valores, os hábitos e os tipos humanos da Rússia Imperial.
O que me surpreendeu foi o insólito e o fantástico na obra de Gógol.
Eu pensava que o realismo fantástico estava ligado a Júlio Cortázar, Garcia Marques e outros latinos (inclusive o Dias Gomes) e ao Teatro do Absurdo de Arrabal e Cia., mas todos são de meados do século XX.
Durante a leitura desses contos, por momentos, eu me lembrava dos Gibis que eu adorava ler, como o Terror Negro e Contos de Terror. Naquela época eu morria de medo. Agora, de rir.
Sobretudo no Capote (ops, desculpe o trocadilho!) a realidade se transforma num fantástico “de alma penada”. Insólito mesmo é O Nariz. Imaginar um nariz, o próprio “nariz vestido de uniforme de gola alta, calças de camurça, com uma espada e... com um chapéu de penacho”, entrando e saindo de uma carruagem! Não sei se era hábito na época, mas hoje a imaginação poderia ser fruto de uma profunda cheirada, e não do pó da estrada.
E o que um rei, da Espanha, super conservador, autoritário ao extremo, e que acabou por perder quase todas as colônias das Américas, que reinou há décadas, tinha a ver com o cidadão russo, também funcionário público “bajulador”? Nada. Absolutamente nada. E acho que essa é a razão para que, no Diário de Um Louco, o protagonista achar ser esse rei, Fernando II. Mantendo assim, a ilógica, o insólito o absurdo. Onde a correspondência escrita entre duas cachorrinhas é absolutamente natural. Nem por isso, o conto deixa de fazer críticas a inoperância do funcionalismo público (quanta atualidade!), aos contrastes entre classes sociais, a servidão moral, mas tudo com um humor próprio de um incorrigível gozador.
No “Noite de Natal” temos a fantasia e realidade se entrelaçando. O diabo se transforma num personagem, até que interessante por sinal, e se introduz na estória de uma comunidade e nas relações dos vários personagens. Lá pelas tantas, figuras fantásticas dão um show de animação, fazendo lembrar quadros do Bosch. Um caso de amor, uma comédia de erros, uma saga, uma crítica social, uma grande diversão... para o humor do autor.
Por fim, “Viy”. Quem o viu, dizia que era um gnomo enorme, com pálpebras que chegavam ao chão. E o autor adverte “Toda essa história é lenda popular”. Ainda bem! Porque o que Gógol nos conta de realidade eram os cossacos, seus valores, hábitos e crenças. E aí ele dá todas as dicas para a criadora (Joanne Rowling), o produtor dos filmes (Spielberg) e os diretores (Chris Columbus, Alfonso Cuarón, Mike Newell) que fizeram... Harry Potter. Todas as imagens e fantasias dos filmes do século XXI encontraram nos contos de Gógol do XIX. Se ao lermos a sério, numa noite fria e chuvosa, sozinhos num sítio distante, e a energia cai, daria até para ficarmos assombrados. Porque fantasmas como do Lincoln no limbo, e muito mais feios, voam por sobre nossa cabeça e até matam quem pretende exorcizá-lo.
Não fora a companhia do Gógol, um humorado gozador, daria para assustar.
quatro primeiros
Durval Tabach
05/12/2019 - 13:06
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Capote!
Para mim, os contos dessa coletânea estão mais ou menos em ordem de genialidade. Gostei bem mais dos três primeiros do que dos dois últimos.
O capote é simplesmente sensacional: o ritmo, a descrição precisa, a fina ironia, a crítica ácida… Fazia tempo que eu não me divertia tanto com uma leitura. Só o nome do anti-herói, Akaki Akakiévitch, já remete às nossas contemporâneas risadas digitais: kkkk! Mas foram minhas risadas tradicionais, vocais, que convenceram minha esposa a ler o livro. A gente vai imaginando o filme na cabeça, talvez feito pelo Monty Python. A Wikipedia apontou diversas versões para cinema e teatro, infelizmente nenhuma do grupo britânico…
Pobre Akakiévitch, mas quem nunca foi um pouco como ele, vivendo mecanicamente, “remoendo pequenos problemas” (como diria Cazuza), que atire a primeira a pedra.
Além de filmes e peças, seria interessante ver também uma reescrita contemporânea desse conto, porque ele parece servir para descrever tantas coisas atuais. O capote poderia ser substituído, por exemplo, por um smartphone. Será que alguém já tentou? O Google não me ajudou muito a descobrir.
Diário de um louco e O nariz seguem na mesma onda, divertidos e ligeiros, sem que isso comprometa o olhar crítico do autor sobre sua sociedade. A profusão de cargos e hierarquias, aparentemente mais importantes que os atos das pessoas, dá uma curiosa noção de como as coisas funcionavam no império russo, com a burocracia impregnada em todos os aspectos da existência.
As histórias folclóricas de bruxas e demônios de Noite de Natal e Vyi, embora interessantes para complementar o quadro da Rússia do século XIX pintado por Gógol, já não fizeram tanto a minha cabeça. Pensei em tirar uma estrela do livro por causa disso, mas O capote é 6 estrelas, então que se registre 5 estrelas para a coletânea, porque ela merece.
Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo? (Franz Kafka)