O enigma de Qaf
O enigma de Qaf é um romance de aventura, saga de um poeta-herói em busca de um poema, “Qafiya al-Qaf”, o oitavo poema suspenso. Construída a partir de três linhas narrativas — a história do protagonista, as narrativas secundárias, quase um duplo da primária, e as lendas de heróis árabes —, a trama reconstitui (ou inventa) o universo mágico de toda a mitologia pré-islâmica, no mesmo passo que recupera em português a vocação poética da língua árabe.
Alberto Mussa é um dos mais importantes escritores brasileiros. Este livro projetou o autor nacionalmente, em 2004, e foi rapidamente traduzido para vários idiomas. Foi eleito pelo jornal O Globo o melhor romance do ano e conquistou dois importantes prêmios: o APCA (Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de São Paulo) e o Casa de Las Americas 2005, eleito o melhor na categoria Literatura Brasileira por unanimidade do júri.
Esta nova edição tem prefácio da professora emérita da USP, Walnice Nogueira Galvão, uma leitura acadêmica, que oferece informações valiosas ao leitor curioso. O texto de Alberto Mussa, sempre entremeado de elementos não ficcionais, desperta esse interesse. Um pós-escrito do autor, quase uma novela de formação, conta como ele escreveu este livro e, principalmente, como começou a utilizar métodos criados a partir das dificuldades que as histórias lhe ofereceram, construindo Qaf como um mosaico comovente e intrigante. Acréscimos necessários a quem já conhece a obra e que devem ser desfrutados por todos os que tiverem o prazer de ter um exemplar desses nas mãos.
Comentários
APPIO
06/05/2019 - 19:46
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O ENIGMA DE QAF
O enigma de Qaf, de Alberto Mussa
Eu nada conhecia da cultura árabe. Apenas li, há um ano, “Uma História dos Povos Árabes” de Albert Hourani (Cia. Da Letras, 2ª. Ed.) e há muitos anos “O Físico”, que será nossa próxima leitura. Fora isso, só as estórias das mil e uma noites (e depois soube que eram de origem persa).
Comecei lendo como normalmente se lê os livros: na seqüência das páginas. E de hábito, pelo primeiro capítulo. E como sempre sem ler prefácios, orelhas e comentários.
Ao iniciar a leitura do “Enigma de Qaf” pensei que seria contada a estória de um enigma que seria decifrado. Doce ilusão.
O título é realmente fiel à definição de “enigma”: “coisa obscura e de difícil compreensão”. (1)
Após algumas dezenas de paginas lidas, bem com fuso, recomecei, lendo o Prefácio e a Advertência, e conclui: realmente, são três (livros) em um:
O primeiro, podemos dizer que é um conto ou curto romance, formado pelos capítulos enumerados com as letras árabes (mas essas letras, também são números, aprendi. Mas não estão na ordem seqüencial 1ª, 2ª, 3ª...!).
Um segundo, denominado de “Excursos”, é um compendio de narrativas, que se referem a lendas, mitos ou mesmo possíveis histórias da tradição árabe. Esses “Excursos” guardam (ou não) relação com o respectivo capítulo (mais não do que sim). E também não guardam relação entre si.
Um terceiro livro são os “Parâmetros”. Ele é independente, mas por recomendação expressa do autor, ele deve ser lido para ajudar “um melhor conhecimento da cultura pré-islâmica”, que envolve a narrativa do primeiro. Entretanto, a leitura deste terceiro livro deve ser feita “por quem tentar decifrar o enigma de Qaf” que está no primeiro. Mas não só, é preciso “prestar atenção às epígrafes e às poucas informações que constam abaixo de cada uma das vinte e oito letras árabes”.
Claro que essas epígrafes são bem esclarecedoras. Como esta: “Yá, 28ª letra como número, 10 numa seqüência, o 10º inicial de (letras árabes), direita, e (letras árabes), esquerda,” e na seqüência: “Kaf 22ª letra como número, 20 numa seqüência, o 11º inicial de (letras árabes), nobre, e (letras árabes), cão”.
Sinceramente, esperava ler descontraída e descompromissadamente um livro de conto árabe. Mas defrontei-me com um tratado de mitologia, etmologia, etnologia, e outras gias. Não era apenas para se ler. Era para se estudar.
Assim me postei. O conto (o primeiro livro) é muito interessante para quem, como eu, não conhecia a cultura árabe, ainda mais a cultura pré-islâmica desses povos originalmente nômades, no período chamado de “Idade da Ignorância” (crio que antes da escrita).
Uma grande diferença com aquilo que estou acostumado (cultura ocidental/européia) é a valorização do “poeta herói”. A saga ou aventura não é protagonizada por um guerreiro (um príncipe ou um nobre que domina a arte da espada), mas por um poeta que, mesmo envolvido em guerras e combates, seus verdadeiros duelos são de palavras, de poemas. E entendi que eles tinham cânones que, obedecidos, os qualificavam.
O mundo real de tendas sobre a areia, de tribos e clãs, de (mais) camelas (que) camelos, de garanhões, de mulheres lindas (mas invisíveis pelos véus usados) e da organização social tribal e patriarcal - com seus valores e honras - se mistura com o mundo irreal de incontroláveis desejos, vinganças, monstros, feras, bruxas, espíritos, e mistérios.
Apesar da “esfera fenícia” ser conhecida por esses árabes (?) o mundo ainda era plano, e terminava nas montanhas que o circundam: as montanhas de Qaf – o enigma. Mas, “esclarecendo”: Kaf (ou Qaf, ou tanto faz) também é “a 22ª letra, o número 20 numa seqüência, o 11º inicial de nobre e de cão”. Ficou Claro?
Aprendi que a grafia da língua árabe é apenas de consonantes, não tem as vogais: Assim, pelo que entendi, a escrita é a mesma para “belo” e “bala”; “lido” e “lado”, “conto” e “canto”, “fada” e “fado”.
E também aprendi que não é uma língua objetiva, o sentido ou significado das palavras se formam ou se alteram segundo o contexto. É uma língua que se constitui e se articula por metáforas. Curiosa é a proposta de que - segundo um dos sábios de um conto paralelo - não existem sinônimos.
Os Excursos (2) segundo o autor são “narrativas relacionadas à intriga dominante”, mas sinceramente não vi relação. Entretanto, como tudo são metáforas, provavelmente eu que não entendi.
A paixão do autor pela cultura árabe é auto declarada. Mas seria ele tão apaixonado, a ponto de ver nesses povos – nômades e então analfabetos – a origem de fatos e crenças da cultura ocidental?
Será que o herói da Floresta de Sherwood é uma cópia? Teriam eles criado o monoteísmo pré-islâmico? Teriam criado o ardil do Cavalo de Tróia? Teriam inventado a inseminação artificial? Que Dante teria tido preceptiva neles? E que Virgilio, na verdade, seria AlQay? Teriam eles criado a teoria filosófico-teológica de Alan Kardec? Criaram eles o conhecimento do conceito da reencarnação? Poderia algum deles ter testemunhado a Paixão de Cristo? E proposto a Santíssima Trindade antes de Cristo? E a Ressurreição? E os Reis Magos? Ou ainda, Karl Marx buscou neles o socialismo-comunista?
Os Excursos são interessantes, pois podem ampliar o conhecimento sobre a cultura árabe. Porem (como aprendi depois) com muito cuidado, porque o que pode parecer História necessariamente não o é, e o que aparece como uma lenda ou mito ancestral, também podem ter sido apenas uma ficção, e criada do Século XXI.
Uma coisa é contar uma lenda. Outra coisa é criar uma estória e contá-la como se fora uma lenda. No caso, quem as lê é que deve distinguir. (Quem tem uma fábrica de antiguidades deve se divertir com seus clientes crédulos).
Os Parâmetros seguem a mesma toada dos Excursos. E contam outras estórias e/ou lendas e/ou mitos e/ou ficções.
Curioso é que numa sociedade que era patriarcal, tribal, machista, na qual mulheres eram oferecidas como prêmios ou trocadas como mercadorias, elas pudessem ter papeis importantes, não pela beleza que algumas possuíam nem pela conseqüência das paixões provocadas. Mas pela inteligência.
Segundo o autor, às mulheres árabes devemos: a álgebra e matemática pura (Malika e sua demonstração (X ÷ 0 = 0; Y÷0; X=Y?); (X÷0=0; X÷1=X; X=1?); (2 X ½ = 1); (÷=x); Labwa redescobriu a arte da construção naval; Zainab que aprisionou o tempo, criando a escrita e, pela velocidade com que podia registrar os acontecimentos “ao vivo”, ela deve ter criado a “taquigrafia”.
Quanto aos homens, bem, a eles a virilidade: a estória do nonagenário satisfazendo plenamente onze jovenzinhas... ou o Campeonato de Virilidade ...(lembra aquela antiga piada do campeonato de virilidade no Maracanãzinho, que certamente teve origem nessa lenda)!
Depois de ler, reler, ir e vir, co autor conclui: um estudioso, grande conhecedor da cultura árabe, explicitando toda sua erudição, brinca com a ignorância do leitor, ao longo dos “três livros”. Por fim, associa a sua criatividade infindável à necessidade mercadológica de publicar o seu conto/romance com mais páginas, no sincero texto do pós-escrito. Palavras do próprio autor:
“esse livro que apresentei aos editores. Mas não fui feliz: publicado, o original não renderia muitas páginas; e o público queria livros grossos e pesados”. ...”mas me parecia impossível, todavia, mexer no texto... introduzir personagens, alongar episódios ou mesmo entender o discurso... Aquele impasse entre a necessidade editorial e a concepção puramente literária de uma narrativa... a solução que me ocorreu para ampliar o Enigma que Qaf foi acrescentar capítulos intermediários, que não afetassem o fluxo principal... e foi assim que surgiram os parâmetros e logo me dei conta de que podia misturar ensaio e ficção, introduzindo modificações, compondo versões pessoais, adulteradas, da lenda daqueles poetas. Esse artifício aumentou meus originais em cerca de 50%.”... para dar ao livro o equilibro e a simetria... 14 Excursos foram escritos mais livremente...”
Do “Enigma de Qaf” conclui: لغز
Nunca mais vou ler um livro sem antes ler prefácios, notas do editor, apresentações, comentários, orelhas, inter-fácios e pós-fácios, opiniões de amigos...
quatro primeiros