Cândido, ou O Otimismo
Reconhecido como a obra máxima de Voltaire, Cândido, ou o Otimismo investe no deboche para satirizar a tolice dos filósofos e a petulância dos poderosos.
Até ser expulso de um lindo castelo na Westfália, o jovem Cândido convivia com sua amada, a bela Cunegunda, e tinha a felicidade de ouvir diariamente os ensinamentos de mestre Pangloss, para quem “todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis”.
Apesar da crença absoluta na doutrina panglossiana, do primeiro ao último capítulo, Cândido sofre um sem-fim de desgraças: é expulso do castelo; perde seu amor; é torturado por búlgaros; sobrevive a um naufrágio para em seguida quase perecer em um terremoto; vê seu querido mestre ser enforcado em um auto da fé; é roubado e enganado sucessivas vezes.
Cândido só começa a desconfiar do otimismo exacerbado de seu mestre quando ele próprio e todos os que cruzam seu caminho dão provas concretas que o melhor dos mundos possíveis vai, na verdade, muito mal.
Cândido, ou o Otimismo é um retrato satírico de seu tempo. Escrito em 1758, situa o leitor entre fatos históricos como o terremoto que arrasou Lisboa em 1755 e a Guerra dos Sete Anos (1756-63), enquanto critica com bom-humor as regalias da nobreza, a intolerância religiosa e os absurdos da Santa Inquisição. Já o caricato mestre Pangloss é uma representação sarcástica da filosofia otimista do pensador alemão Gottfried Leibniz (1646-1716).
Antecipando o sucesso desbragado e a carreira de escândalo do livro, Voltaire, pseudônimo de François-Marie Arouet, assinou a obra com o enigmático Sr. Doutor Ralph.
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APPIO
15/01/2019 - 19:18
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O Cândido, de Voltaire
Candido, de Voltaire
Ler o que foi escrito há dois séculos e meio me é fascinante. Porque me imagino sendo levado num túnel do tempo, para época e locais só visitados nos livros de História. Ou nos filmes “históricos” de Hollywood (o que vale mesmo é o tratamento visual).
Só em pensar que o ”Cândido” foi escrito provavelmente com penas de ganso, ou bambu, (pouco provavelmente com uma caneta de ponta metálica, de molhar na tinta feita de cinzas). E, à noite, sob luz de velas e sobre um papel feito com de trapos de tecido (sabe lá Deus de que origem). E ainda por cima com a possibilidade da sua vasta peruca lhe cair sobre o manuscrito e borrá-lo, ou pior ainda, ser chamuscada na vela, já me proporciona olhar diferente para o texto.
Até então, Voltaire para mim era um pensador iluminista, um libertário e enciclopedista, de percepção aguda e crítico feroz dos hábitos do seu tempo, implacável com o clero e, na medida as sobrevivência também da nobreza.
Eu não o via como um “escritor”, contista ou romancista, mas um filósofo. E, como tal, meio imaterial, meio abstrato. Lê-lo contista mudou ainda mais meu olhar
O que eu já sabia era que a França vivia o período de um absoluto poder absoluto. Monarquia poderosíssima (os Bourbon), sem rival no mundo ocidental à época, em poder e autocracia. Os ingleses eram “mais democráticos”, pois tinha até Parlamento. E os ibéricos já tinham detonado toda a grana arrancada das colônias e esvaziavam as últimas minas das Américas.
E nesse reino, em que Versalhes não era museu, mas tão apenas a residência do Luis XV (que herdada essa casinha do bisavô Luis XIV,) e que as classes se resumiam a nobreza, o clero e... o povo (que se expluda!), ser crítico dos costumes e do poder era um tanto insalubre, afinal a Bastilha-Inn ainda era quatro estrelas e Voltaire já passara várias temporadas em “resorts” semelhantes.
Até que o jovem Cândido me apresentou um Voltaire mais real e mais humano.
Ao lê-lo (Cândido), comecei a me lembrar do que havia lido há décadas, o Satiricon, de Petrôneo. Apesar do pequeno lapso de tempo entre os dois (17 séculos) vi semelhanças. Como vi semelhança com os contos picarescos, cujo enredo é do mesmo padrão: aventuras, enrascadas, espertezas, ludíbrios, coincidências incríveis, coisas do nosso Malasarte e assemelhados.
Aos olhos de hoje, esse pequeno romance, um conto talvez, certamente não tem o mesmo atrativo que poderia ter tido à época.
O próprio estilo, direto, sem rebuscamentos, em ordem direta contrapunha-se ao barroco - mesmo que tardio (rococó) ainda persistia como padrão estético.
Voltaire faz críticas óbvias a ele (“...explicou muito bem como uma o peça podia ter algum interesse e não possuir nenhum mérito... cumpre ser novo sem ser estranho, muita vez sublime, e sempre natural... “e etc. –Pag 131).
Achei a forma do Candido dramatúrgica: noventa por cento do texto é de diálogos. Facilmente poderia ser transposta para o teatro. Ou melhor, para o cinema.
Mas acho que as locações custariam muito. Voltaire esbanja seu conhecimento geográfico e expõem cenas – ou menciona fatos - na * França (Paris, Bordeaux, Normandia), Inglaterra, Canadá, Alemanha (Vestfalia, Ultrech, Rostock, Leipzig), Portugal (Lisboa, Porto, Coimbra), Itália (Roma, Nápoles, Veneza), Espanha (Madri, Cádiz), Líbia (Trípoli), Argélia, Egito (Alexandria) Tunis (Tunísia), Marrocos, Turquia (Esmirna, Constantinopla) Rússia, Letônia (Riga), Holanda (Haya, Roterdam), Espanha (Cádiz, Avicena), Argentina (Buenos Aires) Paraguai (Sacramento), Guiana Francesa (Caiena), e outras. E até a mítica Eldorado entra no seu Atlas.
* (nomes atuais dos Países)
Cultura era o que Voltaire esbanja, ao citar e reconhecer dezenas de títulos de livros na biblioteca do veneziano. Bem como os pensamentos filosóficos colocados nos personagens.
Mas ele não sabia que aqueles carneiros avermelhados eram lhamas.
O clero tem sua dose de critica contundente, não só ao mostrar os autos de fé e execuções revestidas de pantomimas, como pela luxuria dos seus membros e vetores da DST, tida como herança trazida por Colombo.
Esses prelados são mostrados até como escravagistas sexuais, embora a escravidão ficasse mostrada como fenômeno não raro à época, e as mulheres eram usadas, expondo práticas, abusos e violências sexuais que parecem não se sujeitarem sequer a censura moral.
E Voltaire reporta até a prática de zoofilia (macaquice que nem seu contemporâneo, o Marques de Sade, ousou).
Nem aos Judeus Voltaire exclui sua crítica, ao identificá-los com personagens usurários, comerciantes oportunistas de jóias e tipos não lisonjeiros. Algumas implicâncias lembram Molière, como com médicos, padres e autoridades.
Como Voltaire já conhecia a hospitalidade dos resorts carcerários da época, foi sutil a criticar o Rei e a nobreza (“L´Estat cést de mon arrière grand-père” !!!). Mas coloca seis personagens em condições nem um pouco nobres: são seis reis “destronados”. Parecia um recado explícito: “Olha só você (ou melhor, Vossa Majestade) amanhã!
Leitura fácil, que nos leva a querermos ver o fim de tanta desdita, percorrer seguidas aventuras e conhecer o caráter de muitos personagens. Assim somos levados facilmente por essa estória que completou exatos 260 anos.
quatro primeiros