Se um viajante numa noite de inverno
Se um viajante numa noite de inverno foi escrito em 1979, é o décimo livro publicado do autor e logo que foi lançado recebeu grandes elogios da crítica porque o seu romance conseguiu ir muito além do esperado, pois no livro há muitas histórias dentro de outras histórias e personagens curiosos, como se a expressão, tão batida, “quando o leitor entra dentro do livro”, fosse levada para um lugar conhecido, mas sempre original quando bem feito: a metaliteratura. (Livro e café)
Nesse romance, Calvino consegue uma proeza notável: unir o prazer voraz da leitura às tortuosas questões da vanguarda literária. No centro de sua preocupação está um tema que os teóricos chamam de "crise da representação", ou seja, no mundo capitalista contemporâneo, dividido, múltiplo, alienado, não teriam mais lugar os romances tradicionais, com princípio, meio e fim, que constroem personagens e organizam o mundo, dando um sentido às coisas. O leitor de hoje estaria condenado ou à leitura espinhosa de obras que se debruçam sobre si mesmas e procuram desesperadamente uma saída para a literatura, ou à superficialidade descartável das obras de simples entretenimento. Calvino "socorre" esse leitor que é inquieto e exigente mas que gostaria que os autores escrevessem livros "como uma macieira faz maçãs". Para isso, faz do próprio leitor seu personagem principal, cuja grande missão é ler romances. E tal como você, leitor(a), ele entra numa livraria e compra este livro: Se um viajante numa noite de inverno. É aí que começa a história.
Comentários
APPIO
04/12/2018 - 19:25
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Comentário sobre "Se um viajante numa noite de inverno"
Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino
Procuro não ler os comentários sobre os livros que vou ler. Provavelmente para não me influenciar. Foi o que fiz com o “Se um viajante numa noite de inverno”.
Como demorava a entrega do livro impresso que encomendei, comecei a ler o texto na versão eletrônica. Mas meu I-Pad estava com problemas: sem nenhum comando, mudava a página que estava lendo. Pulava para trás, ou para frente, aleatoriamente. Só depois de ler alguns parágrafos, percebia. E aí ia procurar a pagina que estava lendo. Recebi o exemplar impresso, e levei i I-pad a BR4-Assistência Técnica, na Alameda dos Jurupis.
Aí, percebi que o exemplar impresso também estava com problemas. O texto me parecia saltar, um tanto desconexo. E como eu não conhecia nenhuma assistência técnica para levá-lo, continuei a leitura. Mas não foi fácil. Desisti e retomei a leitura várias vezes. Se eu conseguira ler o Arquipélago Gulag até o fim, iria também ler “Se o viajante...”. Até é o fim.
Soljenítsin foi mais camarada.
Como habitualmente faço, à medida que leio, se algo me chama a atenção ou desconheço, procura pesquisar. Li que sobre a história dos Cimbros (Sec. II). E sobre os Cimérios. Comecei a entender do que o autor tratava. Mas descobri que “apenas alguns poucos nomes pessoais da língua ciméria sobreviveram, em inscrições assírias”. E que o nome da Criméia não tem a haver com os Cimérios. E que a República Ciméria, de que eu nunca ouvi falar tinha um motivo: nunca existiu.
E quando começava a me interessar pela história, aparecia outra.
E inúmeros personagens começaram a desfilar, em estórias diferentes, que se sobrepunham, se interrompiam, se relacionavam ou não.
Em certo ponto, lembrei-me do Sérgio Porto, mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, um dos maiores cronistas do Brasil, e do seu “Samba do Crioulo Doido”.
A princípio sem entender nada, comecei a perceber a intenção e técnicas do autor.
Mas percebi-me, lá pelas tantas, sendo envolto em uma rede de linhas entrelaçadas, ou entrecruzadas, mas que sequer eram da mesma teia. Às vezes, achando que estava compreendendo, eu me perdia. E sentia que, pela minha incompreensão, eu ia afundar em uma fossa vazia, porque não encontrava firmeza no caminho que meu entendimento me levava. Mas continuei lendo, mesmo que às vezes, à noite, com sono, querendo seguir em frente, e não conseguindo, me sentia como que debruçado na borda de uma escarpa, temendo a vertigem e o vento que me empurravam para o sono profundo: para o pesadelo.
Geralmente, pessoas quando pensam no que estão lendo, olham para cima, talvez buscando uma referência na memória. Quando realmente eu não conseguia compreender o que estava lendo, olhava para baixo, frustrado ou envergonhado pela minha ignorância, pensando: que raio que essa história aguarda, lá em baixo, seu fim? Como será o fim disso? Teria um fim? Num trem noturno, se um viajante numa noite de inverno começasse a ler esse livro, não chegaria acordado à próxima estação. Mas eu insisti. E continuei lendo nos lapsos após cochilar e despertar do pesadelo, e cair novamente em sono. E via que as situações e personagens não eram do pesadelo.
Por fim, aceitei a dialética do autor, de contrapor antagonismos, de brincar com o leitor, num jogo inteligente, porém que só ele conhecia as regras. Aí vi que não era um jogador. Mas p joguete. Ora eu era um, ora eu era outro: leitor, personagem, autor. Não sabia quando o pronome eu, oculto ou não, era eu ou eu era ele.
O autor brincava comigo, ora de esconde-esconde, ora de siga-seu-mestre, ora de, na maioria das vezes, de João-bobo.
“Lá pelas tantas, lembrei-me do “Velho Guerreiro” e de sua frase lapidar: “Não vim para esclarecer. Eu vim para complicar”.
Sem dúvida, o autor desfilou sua inteligência impar, sua habilidade narrativa, seu grande conhecimento literário e sua sutil crítica ao academicismo – se é que ainda haja. E sobrelevou seu eruditismo, sua inventividade, sua criatividade, sua fertilidade em gerar estórias, personagens, locais, situações.
Mas declarando a intenção de colocar o leitor como protagonista senti que o protagonista não fui eu: foi o seu Ego.
Mas acho que usou e abusou do domínio da meta-linguagem, da inter-literalidade, da filosofia da literatura, não se enquadrou em nenhum gênero (nem em número, nem em grau) literário.
Pensei que ia ler um romance, ou um conto. Mas me deparei não com um, mas conjunto um conjunto de contos, que abordaram encontros e desencontros (mais os últimos que os primeiros), contos de aventuras, contos de espiões, contos de heróis de pouco caráter, de reis e rainhas, contos de gurus, contos de amor, inacabados, e até com sexo, expos toda uma teoria literária.
Embora reconhecendo o mérito e o brilhantismo do autor, eu não gostei – talvez por não conseguir alcançá-lo. E lembrei-me do que disse a um colega deste grupo (ultimamente ausente): “Para mim, o importante é a estória e não o narrador”. Não foi este o caso.
Por fim (enfim!) pra mim foi o primeiro caso de... “contus interruptus”.
quatro primeiros
Durval Tabach
14/12/2018 - 17:13
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Da importância de um desfecho
Você decerto já leu muitas narrativas em terceira pessoa, outras tantas em primeira pessoa, mas é improvável que tenha lido uma história narrada em segunda pessoa.
Quem narra ‘Se um viajante…’ é “você”, e isso é a primeira grande novidade deste livro, que parece um experimento literário visando embaralhar os limites entre leitor, personagem e escritor, desafiar seu amor pela leitura e sua capacidade de compreensão de texto.
Você, leitor, vira uma cobaia de laboratório. Está sendo escrutinado, manipulado e zombado pelo escritor, ou talvez seja mais correto dizer pelos escritores, já que o autor real se transmuta em múltiplas personas (personagens?) a cada capítulo desse livro, composto de peças belíssimas entremeadas por outras no limiar do ininteligível, que resultam num conjunto intencionalmente irritante.
No começo, você vai se irritar quando a narrativa principal (principal?), contada nos capítulos numerados, é sumariamente interrompida por capítulos com nomes exóticos, nos quais histórias completamente novas são apresentadas e conduzidas só até o ponto imediatamente antes do clímax, para então serem abruptamente abandonadas. Vai se irritar mais ainda quando perceber que o truque será usado até o final do livro, sem que uma ansiada satisfação para a salada de livros dentro de livros lhe seja concedida.
Com a leitura mais adiantada, a situação se inverte. À medida que a história “principal” mistura revoluções com contra-revoluções e contra-contra-revoluções, falsificações e refalsificações, idas sem volta, impostores que usam disfarces sobre outros disfarces e assim por diante, a essa altura você não vai mais se incomodar com as interrupções da narrativa. Pelo contrário, vai desejar o alívio trazido pela história nova em folha que lhe aguarda no capítulo seguinte, mesmo sabendo que ela ficará sem desfecho.
As quatro estrelinhas que você dará a este livro no Ranking CLS serão, acima de tudo, pela maestria, elegância e fluência desses romances interrompidos, que são brilhantes, como há muito tempo você não lia. Aprenderá uma lição como leitor: que os desfechos, na literatura (como na vida?), não são indispensáveis.
PS - É claro que estou falando de mim quando me refiro a “você” neste comentário. Foi só uma tentativa pretensiosa de fazer você (você?) já ir entrando no clima.
Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo? (Franz Kafka)