A relíquia
Publicado primeiramente em 1887 no formato de folhetim, A relíquia é uma das obras mais celebradas de Eça de Queiroz (1845-1900), um dos maiores nomes da literatura em língua portuguesa de todos os tempos. Este romance consiste nas memórias fictícias de um certo Teodorico Raposo, o protagonista da história. Órfão de pai e mãe, ele foi criado por Dona Patrocínio, uma tia beatíssima e solteirona. Desde pequeno, Teodorico aprende a arte do fingimento e da adulação, e passa a levar uma vida dupla: diante da tia, um beato temente a Deus; longe dela, um libertino que se entrega a uma existência dissoluta. Na expectativa de tornar-se herdeiro da rica senhora, aceita fazer uma viagem de romaria a Jerusalém, a Terra Santa, onde tem início a desgraça do nosso picaresco protagonista.
Irônica, satírica e mordaz como poucas, essa narrativa extremamente ágil envolve o leitor e disseca a natureza do fervor religioso e a hipocrisia dos costumes sociais. Nada é o que parece nesta radical obra-prima que, 130 anos após sua primeira publicação, não poderia ser mais atual.*
*Obra em domínio público. Informações extraídas da página do livro no site da L&PM Editores, relativo a edição comemorativa dos 130 anos de sua publicação (2017).
Comentários
APPIO
10/11/2022 - 06:59
permalink
O ESTRANGEIRO
O ESTRANGEIRO
Albert Camus
Indiferença. Descaso. Apatia. Frieza. Desinteresse. Desapego. Isenção. Negligência.
Foram algumas palavras que me vieram à mente ao ler O Estrangeiro.
Mais do que palavras eram os sentimentos que o personagem me passava.
Desde o principio do livro o comportamento e pensamentos do protagonista me causaram sensações pouco agradáveis.
À medida que lia sentia um vazio, uma inutilidade, uma ausência permeando todos os acontecimentos. Tudo era inconseqüente. A leitura lembrou-me dos tempos da minha juventude e do “existencialismo” que fazia sucesso na época, principalmente entre os que cursavam humanas, e nas rodinhas metidas a intelectuais. Mas principalmente, porque impressionava as meninas. A Filosofia voltava à moda. Falava-se muito e se sabia pouco. Consumiam-se os estereótipos. Centrar o pensamento em nós mesmos, valorizar nosso individualismo, curtir um pessimismo, negar todos os valores e ter uma sensação de vazio, de falta de propósito, e ser contra as tradições e contras o “establishment”, sem sabermos exatamente o que era. Essas, e outras, foram as coisas desse passado que o livro me relembrou. E o Camus era mais citado do que conhecido. Um Nihilista?
Tudo o que ocorre no “O Estrangeiro” não tem significado. Nada empolga. Nem para alegria, nem para tristeza. Nem para a felicidade, nem para a infelicidade.
A descrição da morte e cerimônias fúnebres da mãe é descrita com uma insensibilidade mortal. Frieza total.
Outros personagens, bem construídos, e os acontecimentos bem descritos, não despertam maiores interesses. O autor torna tudo irrelevante. É uma estória de alguém, jovem, sem perspectivas ou expectativas de qualquer natureza, as poucas pessoas com as quais se relaciona por mais íntimas pouco significam para ele e que, por acaso, comete um homicídio não intencional. Vai a julgamento é condenado e será executado.
O que permeia, muito subjetivamente é a crítica. Critica ao comportamento e valores das pessoas “normais”, crítica ao sistema judicial, crítica ao sistema religioso, critica ao sistema familiar. Mas é insensível a tudo. Ao amor erótico, à amizade, à família, ao trabalho, ao entretenimento, à própria vida e à própria morte.
Se para mim não agradou como literatura - aquela literatura que nos leva a não querer parar de ler, que tem conteúdo interessante e poética na forma – o livro é significativo como documento para expressar o pensamento de um “filosofo”, com sua proposta de uma visão de mundo diferenciada (ou indiferenciada?). Acho que para mostrar suas idéias do “absurdo da existência humana” e da sua “estética do absurdo”, cumpre seu papel.
Enfim, para estar de acordo com o autor: eu li, mas me foi ... indiferente!
P.S. Pergunta: Porque “O estrangeiro”?
quatro primeiros
APPIO
02/12/2022 - 16:40
permalink
A RELÍQUIA Eça de Queiroz
Ler Eça de Queiroz, para mim, é sempre uma renovação do prazer da leitura.
Não apenas pela forma escorreita, mas também pela inventividade de suas estórias, que nunca são apenas narrativas descompromissadas, mas que me parecem sempre embutir análises e críticas sociais, políticas, estéticas ou filosóficas. A “Relíquia” parece conter todas essas qualidades.
A estória é a de um jovem, Teodorico Raposo, que apresenta comportamento de beato, mas o faz para agradar e enganar a tia que o adotou - tão rica quanto carola – com o objetivo de herdar integralmente a sua fortuna. Ele gostaria de ir para Paris, mas para a “Titi” Paris era asquerosa, cheia de mentira e de gula, um povo sem santos, com mãos maculadas do sangue dos seus arcebispos permanentemente cometendo devassidão... o que o leva a uma viagem à Terra Santa, para a obtenção de relíquias sagradas, para agradar, satisfazer e fazer a vontade da “Titi”. Seria essa a síntese da síntese desse romance.
Mas, para contar isso, é que brilha a inventividade do autor: cria personagens – tão bem construídos e descritos que parecem reais, como reais parecem ser suas atitudes e atos e os lugares em que ocorrem. Estaria aí o aspecto realista e anti romântico atribuído ao autor? A descrição de lugares – geografia, topografia, vegetação, construções, tipos são tão detalhadas e precisas que me lembraram Euclides da Cunha nos Sertões daqui. Entretanto, nessas descrições de Eça, apesar de precisas, acho que encontramos restos do estilo romântico, pela forma poética que muitas vezes atribui às plantas, flores, planícies e montanhas, ou ao “mar que dorme”.
Quanto aos personagens, é incrível como constrói o protagonista. Um sínico, falso, devasso, fraudulento, enganador, um mau caráter, quase um canalha. Porém sem dúvida um bem humorado e adorável canalha, que se transforma no herói da estória, e nos conquista.
Sua tia, além de uma das principais personagens, pareceu-me ser a personificação crítica do conservadorismo social e religioso do Portugal do Sec. XIX - que Eça tanto se opunha e combatia – mas, neste caso, de maneira muita vez hilária, quando não ridícula.
E as companhias de “Titi” (palavra que nos parecia forma irônica de Tia, mas é o comum no português de lá), formavam como que a sua corte: gentis-homens anacrônicos, barnabés pomposos, notários encostados e, como não poderia deixar de ser, padres astutos..., os quais, em minha opinião, encerram os valores sociais que o autor sempre apontava, denunciava ou criticava.
Outras personagens são igualmente ricas, mesmo que totalmente coadjuvantes – porque são criadas com detalhes que marcam sua presença: a freirinha no barco que leva Teodorico a devaneios ímpios; o servil Alpendrinha – retrato de Portugal submisso, o astuto Pote - guia na Palestina... a lânguida Adélia de seus prazeres; ou a erótica inglesa, Mary, da loja “luvas e flores” (da opção de luva de pelica ou Suécia?), causadora dos grandes prazeres e da desgraça completa de Teodorico.
Agora, o personagem Herr Topsius - o intelectual historiador alemão, especialista nos Herodes e nos Lágidas, tem o papel mais importante do desenvolvimento da trama, ao acompanhar o herói protagonista pela terra santa. Contudo, além disso, creio que Topsius foi o instrumento usado por Eça para evidenciar toda a soberba, empáfia e superioridade germânica da época, da qual autor não devia gostar nem um pouco ao nos confidenciar, leitor, críticas ácidas, apesar de reconhecer o seu talento. E esse “seu“ talento pode ter duplo sentido: pareceu-me que esse personagem tem tudo para ser instrumento de demonstração do conhecimento histórico e do eruditismo do próprio autor, que esbanja seu conhecimento não apenas geográfico e histórico, mas também e, sobretudo profundo conhecimento do cristianismo arcaico e do catolicismo dos evangelhos, apesar de tão avesso ao catolicismo da sua época.
Ao ler a versão original (Editora Itatiaia, 1962 – não sei qual “tradução” (*) que os colegas do CLS leram), lá pelas tantas me senti confuso, não apenas porque embora descrevendo tudo detalhadamente, não havia nenhuma menção à mesquita Al-Aqsa erguida no Século VII sobre as ruínas do templo. Aí, tive de ler e reler, pois a narrativa continuava ocorrendo no mesmo local, porém, custou-me entender que, sem mais nem menos, os personagens – Teodorico e Topsius – lá estão, na casa de Ganmaiel, mas em tempo, em outro momento, dezoito séculos atrás: o momento derradeiro da vida de Jesus de Nazaré.
E com que habilidade e brilhantismo são descritos aqueles momentos, tão sagrados para o cristianismo.
Seria uma meta-história? Desconheço seja um recurso literário e se tem alguma classificação. Só sei que a reprodução da situação e dos diálogos – sobretudo do julgamento – são emocionantes, críveis mesmo que fictícios, contundentes pelas verdades, contraditórios (entre os romanos e judeus). Sobretudo nos transporta para aqueles momentos, sagrados para muitos, pelo realismo da ficção. Difícil explicar quão emocionantes são aqueles momentos, como o discurso de Pilatos e as reações dos fariseus.
E as emoções incontidas de Teodorico tanto ao chegar ao Jordão quanto ao Menorah, seriam recaídas religiosas? Do Teodorico? Ou do Eça? Ou exemplificação do êxtase, esse fenômeno comum a religiosos?
E como poderia alguém tido como ateu e anticlerical ter descrito aqueles eventos sagrados de maneira tão humanamente emocionantes?
Por outro lado, a ironia do autor anti-clero se mostra inúmeras vezes, quer atingindo a própria reputação do Jesus, como pela boca do saduceu Osânias, Jesus teria tido casos (relações) com Magdala, Joana, Susana, e etc., quer ironizando e fazendo piada com nomes esdrúxulos de santos (quantos seriam? Ninguém sabe).
A busca por relíquias é uma evidente crítica às praticas católicas incentivadas pela igreja. O engodo e o abuso da boa fé dos crentes pelo clero são expostos muito claramente. Ao reduzir essas relíquias a badulaques para enfeitar espaços e corpos é uma crítica destruidora, a qual vale até hoje, pela ostensiva comercialização de objetos de culto (que o autor relaciona de maneira tão atual) em todos os lugares tidos por sagrados. Palha da manjedoura? Lasca de madeira da marcenaria São José? Cavaco da Cruz? Espinhos da árvore da coroa de Cristo? Ossos de Santos? Haja!
A crença daquela época nas relíquias raia ao absurdo, mas esse absurdo pode ser visto ainda hoje, pois a fé de muitos projetada em objetos ainda permanece. E o engodo também. Seja o objeto feito por um artesão daqui ou contêiner de uma indústria importado da China.
Mas, em meio a tanta religiosidade, há momentos indescritíveis de bucólicos passeios, inteligentes diálogos e também de elevado erotismo (para a época, certamente), e, sobretudo de humor. Caí na gargalhada, sozinho, ao ler o evento da abertura das relíquias e da viajada camisola. Que situação!
Embora Eça não tenha escrito peças, as situações que descreve são dignas de teatro. Ler é como vê-las.
Por fim, e ao fim das aventuras e desventuras de Teodorico Raposo, nosso adorável canalha parece ter tido uma recaída na sua personalidade, tornando-se um pequeno burguês, trabalhador, pater familiae, conservador senhor. Absolutamente sem graça. Tão sem graça quanto enquadrado pela sociedade conservadora, que Eça tanto criticava.
P.S.; – Para não parecer que e admiração impede a verificação: A mãe de Teodorico morre uma semana após o parto. Posteriormente, numa remissiva, ela aparece viva fazendo raminhos num campo. Lá pelas tantas, Teodorico e Topsius estão no café da manhã. E saem da mesa após a ceia. Seria um devaneio essa passagem de tempo? Cita Igreja do Santo Sepulcro e Igreja do Calvário, como mesma, não são. Há uma Capela do Calvário, mas no Alentejo. A mencionada Guerra entre Itália e Alemanha é desconhecida. E a Alemanha só existe como tal na década de 70 do sec.XIX.
(*) Por fim: não sei qual versão foi lida pelos Colegas do CLS. Se uma “tradução” ou no português original. Na edição que li, não tão antiga quanto eu, encontrei nada menos que duzentas e vinte e seis palavras que não conhecia. Duvidam? Então aqui vai a tradução delas por dicionário do Porto (Priberam):
quatro primeiros