Livro71
A guerra não tem rosto de mulher
Data do debate:
quinta-feira, 18 de Agosto de 2022 - 19:00
Título original:
У войны не женское лицо
Número de páginas:
392
Ano da primeira publicação:
1985
Uma história ainda pouco conhecida, contada pelas próprias personagens: as incríveis aventuras das soldadas soviéticas que lutaram durante a Segunda Guerra Mundial.
A história das guerras costuma ser contada sob o ponto de vista masculino: soldados e generais, algozes e libertadores. Trata-se, porém, de um equívoco e de uma injustiça. Se em muitos conflitos as mulheres ficaram na retaguarda, em outros estiveram na linha de frente. É esse capítulo de bravura feminina que Svetlana Aleksiévitch reconstrói neste livro absolutamente apaixonante e forte. Quase um milhão de mulheres lutaram no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial, mas a sua história nunca foi contada. Svetlana Aleksiévitch deixa que as vozes dessas mulheres ressoem de forma angustiante e arrebatadora, em memórias que evocam frio, fome, violência sexual e a sombra onipresente da morte.
Comentários
APPIO
02/08/2022 - 10:49
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A GUERRRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER
Svetlana Aleksiévitch
Difícil comentar este livro. Difícil deixar de relevar o enorme e extenuante trabalho da autora.
Difícil encontrar o recorte dado por ela em obras que exploram guerras: o lado feminino, o lado da não exaltação do heroísmo, o lado dos sentimentos particulares, os casos de vida, enfim, o pequeno do humano no infindavelmente enorme quadro do horror da guerra.
E o Prêmio Nobel que foi dado à autora certamente não o foi por esta, mas certamente pelo conjunto de sua obra. Isto porque, nesta obra específica, o que ela escreveu foi pouco: apenas aberturas de capítulos e, sinceramente, nada que – na minha modesta opinião – fosse tão significativo para merecer o Nobel. O livro “é” os depoimentos.
Desconheço prêmios que sejam concedidos a historiadores. Se houver, certamente ela é merecedora com destaque.
E sem duvida, sob outra ótica, mereceria o Prêmio Pulitzer de Jornalismo: acho que nenhum jornalista realizou tantas entrevistas sobre o mesmo tema, com tanta profundidade, cobrindo território tão grande, quanto ela. Tarefa Hercúlea.
E com esse magnífico levantamento de testemunhos somos colocados diante de um quadro de horrores, nem realistas, nem hiper realista. Pior: verdadeiro. De uma verdade que nos leva ao espanto, à incredulidade, ao nojo, às piores sensações, diante de tanta crueldade, tanta miséria, sofrimento, enfim, tudo do que há de pior produzido pelo gênero humano.
E, ao mesmo tempo, diante e dentro desse quadro de horrores, encontramos a simplicidade, a singeleza, os sentimentos humanos de pureza e esperança. E isso não como obra da poética da autora, mas como expressão de uma verdade, relatada não por personagens, mas testemunhadas pelos autores do drama real, ou melhor, pelas autoras. E apesar da matança, da degradação, da crueza conseguem ainda manter algo de humanismo e delicado feminismo.
Não vou destacar nenhum dos inúmeros trechos que anotei. Todos do CLS os leram. Eles formam um quadro de horrores inesgotável. Desconheço outra obra (certamente deve haver) em que tanta atrocidade é descrita. É a miséria humana elevada ao seu mais alto grau.
Por outro lado, o que fica evidente é o contraste entre a determinação e bravura do povo, dos soldados e, sobretudo das soldadas e o despreparo e a falta de recursos mínimos para combaterem, ou seja, a parte que cabia ao governo do País.
Mas aí tem a parte que o livro não conta – e também não era seu propósito. O contexto da Rússia naquele período. Stalin havia implantado o que foi conhecido por O Grande Terror, a campanha sistemática de prisões e execuções direcionada contra todos aqueles que se atreviam a discordar ou se opor ao seu domínio absoluto do Partido e do Governo. Liquidou fisicamente lideres do Partido, funcionários graduados e, sobretudo, de comandantes das forças armadas. Mais de um terço dos comandantes do exercito foram assassinados. Pessoas eram acusadas, julgadas e executadas sem defesas. Elas e seus familiares. Dizem terem morrido vinte milhões de pessoas no período.
Isso tudo somado ao fracasso dos planos econômicos que reduziram drasticamente a produção, sobretudo de alimentos, levando à fome e à morte de milhões de russos, revelam que a guerra era a desgraça, porém mais uma desgraça imposta ao povo. Tal era a situação, que em algumas regiões os exército nazistas eram recebidos como libertadores.
É evidente e sabido que os nazistas de Hitler eram mais que cruéis e bárbaros. Nem de animais podemos assim chamá-los, tal o nível da sua crueldade, como é descrito no livro. Mas foi exatamente com esse Hitler que o governo soviético da Rússia fez um tratado de não agressão, para permitir que a Alemanha invadisse todos os países que invadiu, sem que a Rússia os defendesse. Pior. Quando Hitler invadiu a Polônia a Rússia também a invadiu e, como bons companheiros, dividiram a Polônia entre eles.
O que Stalin pretendia era o enfraquecimento dos países europeus, pois isso permitiria a ele invadi-los quando estivessem fracos, e implantar o grande império soviético. Essa era a sua estratégia. Mas Hitler, talvez percebendo antes, quebrou o tratado e invadiu a Rússia. Aí, quem estava se preparando para uma guerra de invasão não se preparara para ser invadido. (*)
Como se vê pelos depoimentos do livro, aos soldados russos faltava de tudo. De armas a munição, veículos de transporte e de combate, alimentos, roupas,... tudo, enfim. O que poucos sabem é que a Rússia recebeu volumosa ajuda material do ocidente.
Por exemplo, a Rússia dependia do transporte ferroviário. Mas no período da guerra, praticamente perdeu a capacidade de produção, produzindo menos de cem locomotivas. Mas recebeu mais de onze mil unidades de vagões. Recebeu também mais de vinte e cinco mil aviões de combate, centenas de milhares de caminhões (cento e cinqüenta mil só de Stdudbakers que representaram mais de dois terços de toda a frota russa). Recebeu ainda mais de cinqüenta mil Jeeps; três mil barcos caça minas, cerca de cinco mil tanques de guerra, um milhão e oitocentos mil rifles e metralhadoras, sessenta mil peças de artilharia, enormes quantidades munições, de matérias primas, de alimentos, inclusive as rações enlatadas para os soldados. Até as botas que lhes faltavam, como contado no livro, foram a eles enviadas aos milhões.
Esse comentário fora do livro talvez brote da minha indignação pelo que o povo russo sofreu e tem sofrido, vítima de seus próprios líderes. São vítimas de um fanatismo incompreensível, submetidos a uma doutrinação que os cega, levados a uma submissão total e contínua por sujeitos que continuam enganando. E também pelo complexo imperial que os impele a querer dominar outros povos. Como no momento atual.
Mas o livro, ou melhor, os relatos - esses sim verdadeiros – mostram o quanto o ser humano pode ser vil e, ao mesmo tempo, quão grandiosa pode ser a solidariedade, o sacrifício, os bons sentimentos e atitude e o amor. Sem heroísmo.
PS - Os russos não foram vítimas apenas dos nazistas.
(*) O grande culpado, Viktor Suvorov.
(*) Programa Lend-lease, Diversas fontes.
quatro primeiros