Tudo é Rio
Tudo é rio é o livro de estreia de Carla Madeira. Com uma narrativa madura, precisa e ao mesmo tempo delicada e poética, o romance narra a história do casal Dalva e Venâncio, que tem a vida transformada após uma perda trágica, resultado do ciúme doentio do marido, e de Lucy, a prostituta mais depravada e cobiçada da cidade, que entra no caminho deles, formando um triângulo amoroso.
Na orelha do livro, Martha Medeiros escreve: “Tudo é rio é uma obra-prima, e não há exagero no que afirmo. É daqueles livros que, ao ser terminado, dá vontade de começar de novo, no mesmo instante, desta vez para se demorar em cada linha, saborear cada frase, deixar-se abraçar pela poesia da prosa. Na primeira leitura, essa entrega mais lenta é quase impossível, pois a correnteza dos acontecimentos nos leva até a última página sem nos dar chance para respirar. É preciso manter-se à tona ou a gente se afoga.”
A metáfora do rio se revela por meio da narrativa que flui – ora intensa, ora mais branda – de forma ininterrupta, mas também por meio do suor, da saliva, do sangue, das lágrimas, do sêmen, e Carla faz isso sem ser apelativa, sem sentimentalismo barato, com a habilidade que só os melhores escritores possuem.
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APPIO
03/05/2022 - 10:12
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Tudo é rio
TUDO É RIO
De Carla Madeira
Para o Clube de Leitura do Sírio
Sinceramente e em princípio, não gostei. Os seus primeiros capítulos não me causaram boa impressão.
A personagem Lucy, uma prostituta profissional, é descrita com uma crueza que, para mim, beira o vulgar. Sei que atualmente, o que chamo de baixa cultura, invade todos os meios de expressão. Peças de teatro parecem ter necessidade de incluir palavrão para ter sucesso. Os stand-up shows, tão em moda, para mim são apenas apresentações sem custo de cenografia, sem nenhum outro recurso dramatúrgico que não um só ator em cena e, tanto quanto possível, com uma linguagem chula.
E parece até que inventaram esse tipo de espetáculo – o “one-man show”.
Isso só me dá saudades daquele que, acho, foi seu criador: José Vasconcelos, com o “Eu sou o espetáculo”, em 1960, que assisti. E também sinto saudades dos shows semelhantes de Chico Anízio, Jô Soares, e até Juca Chaves. Grandes talentos, sozinhos em cena, e sem nenhum palavrão. Depois, Ary Toledo introduziu o palavrão como recurso. Mas, sem dúvida, também talentoso. Lembro de um dos primeiros shows dele. Abrem-se as cortinas. Ary Toledo, sozinho no palco totalmente escuro, diz com voz bíblica: “E Deus disse: faça-se a luz”.
E ao acender das luzes ele completa: “E a Light facta est!”.
Desculpem a digressão.
Mas pelo lado da literatura lembrei-me de Adelaide Carraro, que nos anos 60 escandalizou com suas obras realistas como “Eu com o Presidente”, ”Eu com o governador”, “Podridão”, “Asco”, “Mãe Solteira”, “Orgia na TV”, e muitas outras.
Pelos títulos já é possível intuir seu conteúdos e a sua forma realista de descrever.
Nem os contos eróticos das revistas masculinas (elas existiram: Playboy, Ele&Ela, Homem, Status, etc.) eram tão explícitas. Mais, só o Carlos Zéfiro.
Tudo isso me veio à memória ao ler “Tudo é rio” (com letra minúscula?).
Por certo que o ambiente de um prostíbulo – e daquele prostíbulo que a autora parece tentar retratar- não deve primar pela elegância e discrição.
Entretanto, o comportamento e atitudes erótico-sexuais explícitas, tão obviamente explícitos, e, sobretudo o palavreado vulgar e obsceno pertencem e estão adequados à personagem.
Esse linguajar não me parece caber bem na narradora. É apropriado na maneira da Lucy falar. Mas, não me parece ser apropriado na forma das palavras das reflexões da autora. É como eu entendo. São entidades separadas: a narradora não freqüentava e não pertencia àquele mundo do prostíbulo da Lucy, é uma narradora observadora ou conhecedora dos fatos, mas parece que ela, em certos trechos, adotou a forma explícita daquele mundo que era de Lucy, não da autora/observadora.
Outra coisa que estranhei, e não sei se foi recurso estilístico ou não, foi o uso de frases feitas. São vários os chavões, clichês, lugares comuns, mesmo nas reflexões (seria intencional, um recurso que não captei?).
Outra coisa que não me convenceu muito foi o histórico da infância/adolescência/ juventude da Lucy. Na minha vida real sei que havia um conceito de que por trás de toda prostituta havia uma história de desilusão amorosa, sedução maldosa, abuso infantil, estupro, abandono, uma expulsão da casa/família. E isso justificava a entrada na profissão (falta de alternativa).
Não me pareceu evidente a ocorrência de nenhuma dessas causas traumáticas. A atitude vingativa de Lucy corresponderia a uma revanche a essas causas. Mas a causa da revanche era muito pouca perto do tamanho do da conseqüência. Desejo por vingança? Ou desejo de vingar. E onde ela, na sua tenra idade, teria aprendido aquelas práticas quase profissionais? Parecia já que já tudo? Quem teria ensinado a pratica? (Teria ela lido Adelaide Carraro? Ou Zéfiro?). Isto fica para os psicólogos.
As narrativas familiares dos diversos personagens, não me pareciam unidas na construção do enredo, de forma a gerar uma expectativa que incentivasse a leitura. Mas não desisti. Ainda bem, porque o enredo fica interessante nos capítulos finais, e acaba proporcionado surpresas até então não insinuadas.
Acabei gostando, mas nos capítulos finais. E, como numa tele-novela, os capítulos finais são mais eletrizantes, personagens mudam de caráter e o desfecho tem, enfim, um surprendente... Final Feliz.
Só não consegui decifrar o significado do rio que é tudo.
quatro primeiros