Contra mim
Eis um poderoso mosaico impregnado de lirismo que Valter Hugo Mãe logrou com sua arrojada e harmoniosa escritura. Regalou-nos uma potente memória que se fez nossa. E, enquanto pautava feitos biográficos, desfiou o mistério da criação com a voz profética e imaterial do verbo. Ofertou-nos uma arte que o projeta para a grandeza literária." (Prefácio de Nélida Piñon)
Em Contra mim, Valter Hugo Mãe recupera a infância e parte da adolescência e torna as cronologias temas de sua literatura. Ao lidar com recortes no tempo e com a sabedoria de bem conjugá-los, o livro acontece com leveza e poesia. Vale-se da linguagem da crônica e do estilo que seus leitores bem conhecem, e reúne elementos autobiográficos que se apresentam em sequenciamento, veiculados por períodos curtos e compostos de capítulos também curtos, mas ricos em profundidade de reflexão e sinceridade com a própria história. Estão aqui os temas de sua ficção, derivadas de uma mitologia pessoal que agora o leitor pode conhecer.
A infância retratada pelo escritor passeia por Portugal e sua história recente. Os marcos históricos são o fim do Império Colonial na África e a Revolução dos Cravos e seus desdobramentos. Estes fatos são pano de fundo e moldura para o retrato de um menino e sua mitologia particular. Também estão registradas as descobertas, o contato com o corpo, a relação com o irmão morto e a influência da cultura brasileira em Portugal. Está, sobretudo, o cotidiano, que traz os seus antídotos para as adversidades. Aqui, mais que a infância de um escritor, está uma formação de alguém que se arrisca a ver o mundo sob outra ótica.
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APPIO
12/11/2021 - 16:07
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Contra mim, Valter Hugo Mãe
Contra mim
Valter Hugo Mãe
Surpreendi-me. Como costumo fazer, procurei não buscar informações sobre o livro que esperava fosse um romance. Mas deparei-me com uma obra biográfica, ou melhor, uma autobiografia da infância, puberdade e adolescência do autor. Isto considerando o conteúdo que expõe fatos através do tempo, numa exposição bem na ordem cronológica.
Mais algumas páginas e conclui que não era um romance autobiográfico comum. E nem um romance era. Concluí certo ou errado que estava lendo um livro de crônicas. Sim, porque o estilo é: cada capítulo uma crônica.
Segundo os entendidos, se crônica é o estilo literário que, partindo de um fato real, geralmente do cotidiano e mesmo corriqueiro, não só expõem os fatos, mas analisa e tece críticas, mesmo que subliminares, aos eventos, as circunstâncias, aos valores sociais e aos personagens, acho que estava diante de um livro de crônicas. Pois cada capítulo narra eventos vivenciados, em situação determinada em determinado local, em épocas definidas e presenciados pelo mesmo personagem (o próprio autor) que está sempre presente, como “testemunha ocular da história”, e da “História” social recente de Portugal.
Mas junto com os fatos narrados, nos são oferecidos muitos outros elementos: divagações, analogias, interpretações, explorações de sentidos e sentimentos.
Voltando aos entendidos, outros consideram que o valor da crônica está não no fato reportado, mas na forma como o é. Então, deixando de lado o conteúdo das estórias contadas temos da forma. E, neste caso, esplendor da forma com a poética de Valter Hugo Mãe. Pelo domínio das figuras de linguagem, pela maneira como utiliza as palavras - dando-lhes mais ou novos significados, pela maneira como nos conduz para além do fato narrado e das divagações que nos levam por um imaginário bastante real torna um fato banal num eloqüente testemunho.
Se a narrativa for real, como o gosto de uma criança por colecionar palavras, está explicado que essa criança só poderia mesmo redundar num mestre da escrita. Lá pelas tantas da leitura o conteúdo das estórias ficou num plano menos importante. Na verdade, ele não me despertava tanto o interesse ou a curiosidade sobre o que iria acontecer. Importante passou a ser fruir da forma da escrita. Parecia-me que cada frase fora trabalhada com esmero, como que em busca da sua forma perfeita. Entretanto, sem a menor pretensão erudita e com espontaneidade, fluidez, naturalidade, singeleza até.
Evidente que muitas surpresas advieram do conteúdo, levando-me a conhecer melhor os aspectos sociais da vida portuguesa, como por exemplo, o enorme sucesso e a importância da influência da televisão brasileira na formação da opinião e construção de valores públicos. Sabia do sucesso, mas não tão enorme. Tantas são as citações e tantos os elogios às novelas, atores, cantores e músicos brasileiros que, (maldosamente falando) parecem dirigidos a garantir atração do mercado de leitores no Brasil.
Outro fato marcante: em plenos anos setenta, alunos eram castigados pelos professores com reguadas, palmatórias e tapas na cara! Até mesmo ao ponto de sofrerem fraturas! Estas e outras narrativas levaram-me a concluir que o atraso de Portugal era realmente grande. Esse Portugal dos anos setenta e oitenta era muito mais parecido com o Brasil dos anos quarenta e cinqüenta. O conservadorismo e a ditadura mantiveram o País duas ou três décadas de atraso em relação ao Brasil - que não lá um bom exemplo de desenvolvimento social. Posso afirmar porque vivi nesse Brasil, onde as moças ainda faziam o enxoval sem antes arrumar o marido, quando ainda se distribuíam santinhos religiosos, adolescentes queriam conhecer ainda como seria o sexo, e a Coca-Cola já existia aqui desde os fins dos anos quarenta.
E numa sociedade conservadora, o preconceito vicejava. O despeito e a inveja por uma França “onde todos são ricos”, a disputa com uma Espanha onde havia reis e príncipes e andavam a cavalo e vestiam ouro, luziam ao sol, eram ricos... caçavam...usavam, peles...casavam-se bêbados”. Ou ainda o preconceito contra os africanos cujas crianças nasciam de ovos. E a admiração pelo Brasil – da musica, das praias, sol, mulheres mais... Fica também patente a nostalgia ou a tristeza característica de uma gente que sempre verá partidas e a constante espera pelo retorno. O sumiço do Pai sem pré-aviso ou explicação e seu retorno idem, parece uma chacota com o partir e esperar.
Mas algumas partes das narrativas não me agradaram como a descrição da infindável árvore genealógica ou as férias chatas. Mas amplamente compensadas pelas figuras criadas, tão sutis, tão criativas que se espalham por todo o texto, sobretudo na visão de uma criança? Que tal: achar que “Póvoa do Varzim era a França”; que “eram poucos pais para muitos filhos”; que “não era alguém, era um lugar”, que “Deus é um livro”; que “peixinhos nascem de geração espontânea”; que “era uma casa com memória velha”; que “o dinheiro odeia a gente”, que os pássaros mortos “voavam, mas não tinham o céu por garantido”, “bocas tão pequenas que nem palavras cabiam”... e por ai vai.
Para um colecionador de palavras português oferecer-nos algumas delas é como propor uma “tradução”. Porque a mota aqui seu masculino e tem duas rodas, encandeado é momentaneamente ofuscado, seitinha é bando de moleques, panico é medroso, aluir é gotejar; atilho é mero cordão de amarrar; sachola é um tipo de enxada; berma é acostamento; “sardanita” é lagartixa, “bulício” é burburinho; “pajela” é santinho impresso. Fui buscar todas essas no dicionário português de Portugal.
Agora, quando ele confessa que “há umas duas semanas fui comer uma francesinha ao guarda-sol...” não é bem o que pensaram. Boa leitura.
quatro primeiros