Hibisco roxo
"Uma história sensível e delicada sobre uma jovem exposta à intolerância religiosa e ao lado obscuro da sociedade nigeriana." - J.M. Coetzee
Em um romance que mistura autobiografia e ficção, Chimamanda Ngozi Adichie - uma das mais aclamadas escritoras africanas da atualidade - traça, de forma sensível e surpreendente, um panorama social, político e religioso da Nigéria atual.
Protagonista e narradora de Hibisco roxo, a adolescente Kambili mostra como a religiosidade extremamente "branca" e católica de seu pai, Eugene, famoso industrial nigeriano, inferniza e destrói lentamente a vida de toda a família. O pavor de Eugene às tradições primitivas do povo nigeriano é tamanho que ele chega a rejeitar o pai, contador de histórias encantador, e a irmã, professora universitária esclarecida, temendo o inferno. Mas, apesar de sua clara violência e opressão, Eugene é benfeitor dos pobres e, estranhamente, apoia o jornal mais progressista do país. Durante uma temporada na casa de sua tia, Kambili acaba se apaixonando por um padre que é obrigado a deixar a Nigéria, por falta de segurança e de perspectiva de futuro. Enquanto narra as aventuras e desventuras de Kambili e de sua família, o romance também apresenta um retrato contundente e original da Nigéria atual, mostrando os remanescentes invasivos da colonização tanto no próprio país, como, certamente, também no resto do continente.
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APPIO
24/08/2021 - 16:00
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Hibisco roxo
Hibisco roxo
De Chimamanda Ngozi Adichie
Para o Clube de Leitura do Sírio
A Nigéria é o país mais populoso da ÁFRICA, com aproximadamente 200 milhões de habitantes com mais de 250 grupos étnicos. Kambili, a nossa protagonista do Hibisco Roxo, é da etnia dos Ibos e sua língua é o igbo, uma das dezenas faladas lá, embora o inglês seja o idioma oficial. Ela mora em Enugu, que tem uns 700 mil habitantes, e Lagos - a capital – é enorme: mais de 20 milhões! Parece que quase a metade da população é muçulmana – e entre eles há muitos radicais que praticam a Sharia, e os católicos são uns 40%. Os demais são de grupos religiosos e crenças locais – as estatísticas não apontam, mas essas crenças estão presentes em todo o país.
Até 1960 a Nigéria foi colônia dos ingleses desde meados do século XIX. Com a independência se sucedem governos com golpes militares (lembram da Guerra da Biafra?) e sucessivas ditaduras e, com elas a corrupção, violência, prisões, torturas, estupros, enfim, todo tipo de desrespeito aos direitos humanos, inclusive tráfico humano, trabalho e abuso sexual de crianças, mutilação feminina, violência doméstica extrema, etc. E muitos eticéteras. Fui pesquisar para entender melhor o contexto em que e a ficção de Chimamanda Ngozi Adichie se desenrola. Porém ela se desenrola apenas no microcosmo de uma família, no “ulo” da Kambili, e as sócio-políticas e econômicas são um pano de fundo distante do enredo.
Como sempre, comecei a ler sem nada saber sobre obra e a autora. É o meu jeito de evitar ser antecipadamente influenciado. Com isso, as primeiras cento e oitenta e tantas páginas não me impressionaram favoravelmente. Elas deram-me a impressão de um excesso de minudências descritivas, que me pareciam não contribuir tanto para a narrativa senão para acentuar o verismo do estilo, a tal ponto que a história me parecia autobiográfica, e que a autora se remetia às suas experiências pessoais. Outro recurso, o uso das palavras na língua nativa, não traduzidas, soou-me como idiomatismos, reforçando a sensação do realismo.
Mas o excesso de detalhes me incomodava. Qual importância da “cor da asa da borboleta que voava no jardim (P154)”? Precisaria explicar o como é um regador e como se faz para “a água sair dos buraquinhos (P155)”? Qual a importância de como era “o barulho ao amassar o papel do embrulho do comprimido (P130)”? E saber que “Metade do lábio inferior dela desapareceu dentro da sua boca e seu maxilar tremeu enquanto ela mastigava”?
Entretanto, acostumando com os detalhes e repetições (quantas e quantas vezes foi descrito o preparo de refeições em geral e do inhame em particular?) as descrições dos tipos e situações foram se valorizando.
A protagonista era uma menina tímida, muito mais que tímida. Assustada, atemorizada. Ela e o irmão eram as vítimas preferenciais de um demente (estas são as minhas opiniões), um sádico, um castrador, um idólatra, um fanático, um torturador, filicida ou “fetocida” (meu neologismo de ocasião), enfim um maluco: ... o querido pai da Kambili: o “Papa” – Eugene – que, com a desculpa de querer educá-los o melhor possível e dentro da verdadeira fé – católica – como um fervoroso cristão, impunha aos filhos um rigor obsessivo. Cada minuto era programado, cada atividade cronometrada, cada ato ritualizado, cada palavra pré-definida, cada pensamento censurado. Kambili e seu irmão Jaja se submetiam a esse domínio cruel, que lhes proibia até de sorrir. Ela não sabia como seria “o som da própria risada (P97)”.
Os atos do Papa eram de extrema ternura: deu uma bofetada que deixou hematomas profundos na cara da filha pré-adolescente porque ela não estava na porta da escola quando o motorista parou o carro e teve de esperar alguns segundos (P58); mandava os filhos pegarem galhos para com eles serem açoitados (P205); espancou a filha, quebrando-lhe ossos e ferindo seus órgãos internos, até pô-la em coma e hospitalizada por várias semanas e pelo grave crime dela ter recebido e guardado um retrato do avô, por sinal pai dele (P223); ou ainda derramar água fervendo nos pés da menina para queimá-los até esfolar e arrancar-lhe a pele, pelo grave crime dela não ter avisado a ele que o avô, pai dele foi à casa da irmã dele onde a filha dele estava hospedada (P206). Não bastasse, espancou e quebrou os dedos do filho, atrofiando um deles, porque a criança não soube responder duas perguntas do catecismo (P152) E, com relação à sua esposa, mãe da Kambili ele também a espancava a ponto provocar alguns abortos – e ela era condenada por não lhe dar mais filhos.
Este senhor era riquíssimo, dono de propriedades, de fábricas em vários setores porem não se sabe como conseguiu, pois saiu da miséria. E isso se presume porque seu pai - Papa Nnukwu - ainda vivo, morava numa tapera e mal tinha o que comer. E Eugene assim agia porque seu pai não aderira a sua fé católica – “era um pagão!”. E a sua irmã, Ifeona, porque tinha opiniões próprias e cuidava do pai. Era professora universitária mal paga, viúva e com três filhos, vivia com dificuldades para se manter morando num apartamento precário da universidade. Pai e irmã não eram objeto de nenhuma consideração, de nenhuma atenção, e muito menos de ajuda material desse “cristão convicto” e milionário.
Apesar de impedir a proximidade dos filhos com a tia Ifeona e seus primos Amaka, Obiora e Chima, ele permite que Kambili e Jaja passem alguns dias das férias na casa da tia. Foram suficientes para eles conhecerem outra maneira de ser família, e a estória dar uma guinada.
E aí a contradição da personalidade: era um católico fervoroso, carola, rezava e obrigava aos outros rezarem várias vezes ao dia, sempre de terço à mão, vivia indo à igreja e ouvindo o padre conservador, vendo pecado em tudo. Entretanto ele se auto-instituía um benfeitor, e se regozijava pelos que o idolatravam – mas só porque ajudava materialmente a igreja (e seu padre reacionário de uma crença radicalmente ortodoxa), financiava obras e pagava bolsas escolares. E, ao fazer seu jornal ser independente, de oposição ao governo, com críticas ao regime instituído e defender seu editor, faz parecer que era um liberal. Mas quais interesses verdadeiros ele teria ao se opor ao governo? Um benfeitor e um político liberal em defesa de liberdades?
“Kpam kpam ụgha”! Ele não passava de um cruel Torquemada doméstico, aplicando o pior que a Inquisição houvera feito à sua própria família.
Os personagens de Chimamanda, que fazem parte do enredo, acentuam os contrastes: Ifeona, diferentemente do irmão é liberal. Seu discurso é de permanente resistência e de luta contra o poder (autoritário, ditatorial). Mas na primeira oportunidade, demitida da faculdade, foge com os filhos para os Estados Unidos. Os primos Obiora e Chima apenas compões o cenário. Amaka, a prima, também adolescente, engajada, e com despeito da prima de outro nível social crítica do comportamento da Kambili – a riquinha. Ela faz o contraponto e o contraste entre a personalidade e vida das duas primas. Por fim, a animosidade inicial é substituída até por amizade e ternura. O ancestral ateu contribuiu.
Os padres são outra contradição. Benedictis, velho, reacionário, fiel às tradicionais práticas católicas, parece não ter vivido sob o papado (não do “papá”) do “Pápa” João XXIII e não soube que ocorrera o Concílio Vaticano II.
Já, Amadi, também padre e também católico, era seu oposto. Provavelmente fruto desse Concílio e do ecumenismo que se instalara na Igreja Católica Apostólica Romana, e certamente por influência da Teologia da Libertação, era “moderninho”. Sem ritos, sem batina, sem terços ou rosários, sem sermões, era participativo, envolvia-se socialmente com a comunidade. E parece que se envolveu, não necessariamente apenas com Kambili, cuja inocência, juventude, beleza, timidez precisavam de... proteção e amparo.
Outro contraste, e esse bem acentuado, foi o verificado nos pensamentos e emoções da adolescente que, assim que conhece o padre Amadi, reage aos seus encantos, não como sacerdote, mas como homem. E Kambili, de uma hora para outra, tem reações não mais de uma menininha assustada, como medo de sentir e até mesmo de existir. Tem profunda reação romântica, e de um romantismo adulto, erótico, provocado pelo perfume, pelas formas, pelo próprio do corpo do padre. Não foi o de Santa Tereza, mas foi um êxtase!
Enfim, de contrastes em contrastes, por fim, desenvolveu-se uma estória perfeitamente narrada, nos seus mííííínimos detalhes, com personagens de um realismo convincente, e sem adjetivos ou superlativos, numa mesma linguagem de ordem direta, fácil, descerra o enredo com maestria.
quatro primeiros