A transparência do tempo
O passado remoto e o presente imediato se entrelaçam neste romance do escritor cubano Leonardo Padura. Em A transparência do tempo acompanhamos o já conhecido detetive Mario Conde em seu oitavo caso, o desaparecimento de uma estátua de uma virgem negra. Às vésperas de completar sessenta anos, cético em relação a seu país, Mario Conde assiste ao encolhimento da oferta de livros usados, cuja revenda vinha sendo seu ganha-pão dos últimos tempos. É então que um ex-colega de escola o procura e lhe oferece trabalho: recuperar a estátua de uma virgem negra que lhe fora roubada. Com o desenrolar das buscas, Conde vai percebendo que a peça é muito mais valiosa do que imaginava, tendo suas origens nos Pireneus catalães, de onde fora trazida por um jovem em fuga da guerra civil. Paralelamente, em capítulos intercalados, o autor retraça a história desse jovem e as lendas que envolvem a escultura, tendo como pano de fundo a zona rural da Catalunha, desde a Idade Média até os dias de hoje. Ao buscar a imagem da santa negra pelas ruas de Havana, Conde vaga entre dois polos de um mesmo país: o submundo dos cortiços, do tráfico de drogas e da vida precarizada e o rico ambiente dos colecionadores e galeristas envolvidos em contrabando e venda ilegal de obras de arte. Permeando esses dois mundos, o catolicismo e a santería, sincretizados, e o passar infindável do tempo.
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APPIO
13/11/2020 - 16:23
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A Transparência do Tempo
A TRANSPARÊNCIA DO TEMPO
de Leonardo Padura
Bem que poderia ser apenas um romance policial. Muito bom por sinal. Mas é um romance com muito mais do que boas intrigas, assassinatos e mistério.
Ao mesmo tempo em que aparentemente é narrado o caso de uma investigação de roubo por um ex-policial nos é oferecido bem mais.
É uma profunda analise existencial de um homem que se depara com a chegada da velhice (até que prematura, pois o personagem iria completar os seus sessenta anos). Sessenta anos podem ser “apenas” para quem já passou dos setenta e cinco como eu, ou pelo atual tempo de vida da população: setenta e oito (ops! Tenho só mais três!).
Mas o sessenta é um marco, principalmente para um homem que já se aposentou faz duas décadas, que não tem nenhuma perspectiva na vida, nenhuma possibilidade de esperança para os próximos anos, nenhuma ligação com a família - que ele não teve e não terá - e lhe sobra apenas a certeza de que os próximos serão marcados como os anos da decadência física acelerada e, emocionalmente, pela certeza da solidão.
Mário Conde, o ex-policial, é esse personagem de quem pouco ou nada conhecemos de seu aspecto físico, mas soubemos muito do seu comportamento e de seus pensamentos e, sobretudo, de suas angústias, revelados pela exposição detalhada tanto do cenário social quanto de suas reflexões existenciais, das interpretações das atitudes dos indivíduos e dos comportamentos sociais do povo de uma Cuba que se revela inédita – pelo menos para mim.
Para mim, intelectual um cubano politicamente isento me parecia ser coisa improvável. Quem é contra é muito contra, que é favor é muito a favor. Mas Padura, pelo menos neste seu livro, nem defende nem desfere ataques ideológicos ao Regime, e parece evitar fazer criticas e dar opiniões objetivas sobre as políticas e os lideres desse Regime (afinal, ele continua morando na ilha...). (*)
Entretanto, e como acredito que todo personagem carrega parte de seu autor, Mario Conde se mostra desiludido, frustrado e descrente com o seu País (não afirma, mas, obviamente, com os seus líderes). Pelas datas, ambos – autor e personagem - eram crianças quando foi implantado o regime socialista com a liderança de Fidel Castro (que, curiosamente, não é mencionado), e por muito tempo acreditavam na instalação da sociedade igualitária permanente. Parece que permanente foi apenas o regime político e os seus líderes. E sua crença se desfaz nas evidências da realidade. E talvez seja mais contundente a sutileza de certas descrições do que crítica aberta. Exemplos? : Porque haver uma “Polícia com uma seção de Delitos Maiores (assassinatos, grandes roubos, tráfico)” sob o Regime que eliminou a criminalidade? A descrição detalhada dos bairros miseráveis com “camadas de miséria, fatalidade cultural ou étnica, de abandono e frustração social” (aqui eram chamados de favelas) em contraposição aos “palacetes” e “da vida farta dos ricos”? A discriminação com “o assentamento de imigrantes orientais (não da Ásia, mas da província cubana), como párias? “O escambo entre a população, tornando (o País) um grande brechó”? “Mendigo” calçado “com sacos plásticos” num País sem miséria?
Curiosamente para mim, isso tudo se identifica com descrições de eventos próprios de regimes capitalistas/burgueses/democráticos, como: ação da polícia com “mandado de busca e necessidade de testemunhas” (parece até cena de seriado americano); “palacetes” e “restaurante de luxo”, “mercado de arte”, “viagens freqüente ao exterior...". Digo curiosamente porque imaginava Cuba um País socialista.
Mas, num desabafo de outro personagem, deixa escapar: “Em Cuba, o que não é proibido é ilegal... l; O país está trancado e os outros é que têm a chave...; e que decidem quem viaja e como...; determinam o que era bom e ruim para você, que livros a gente devia ou não devia ler, como cortar o cabelo e que música ouvir. Quem tem a chave são os outros... alguém decide por nós, pra cuidar de nós, e para nos salvar... (!)
Conde, além da sua crise existencial vive a crise da frustração, da desesperança, da decepção, das perdas contínuas, e da ausência de futuro para todos. A constatação da decadência e estagnação econômica, leva à sua repetida pergunta “quem afinal trabalha neste país?”.
Tudo isso já seria suficiente num bom romance. Mas A Transparência do Tempo tem mais. Tem uma santa, ou melhor, uma imagem de uma santa, e com ela o autor traz toda uma cultura religiosa, de crenças e milagres, e de mil anos. Uma santa milagreira e... roubada. Quando? Aí é que tem outra faceta do autor: o autor de romance histórico. Trechos do que parece ser de outro romance e que resgatam a trajetória da própria imagem de madeira negra da santa. Assim, a Virgem Roubada (este poderia ser o título desse outro romance?), tem sua origem contada quando, durante a última batalha, da última cruzada (1291), na Terra Santa, é salva por um cruzado, Antoni Barral, das garras dos infiéis sarracenos que retomaram a Terra Santa. E, de volta à Europa vê e sofre a perseguição e a extinção da sua Ordem dos Templários, por interesse de Felipe, o Belo, de França e do Papa francês Clemente Quinto. Mas a estátua se salva, acobertada numa árvore. Antoni Barral, o mesmo, ou um seu descendente, ou sua reencarnação, e a Santa participam de outro episódio da Historia de Espanha, desta vez no período conturbado e pouco conhecido, que antecedeu a união dos Reinos de Castela e de Aragão que dominaram a região e deram origem à Espanha. Foi o período que Padura descreve no capítulo “Antonio Barral 1472”, em que houve extensa guerra entre os diversos reinos e condados (Navarra, Corunha, Galícia, Compostela, etc). Mais uma vez a imagem da Santa é preservada e escondida. E reaparece com outro Antoni Barral durante a Guerra Civil Espanhola em 1936. E daquele ano e para a Cuba contemporânea é transladada para o enredo da Transparência do Tempo do Detetive Conde. Nesses capítulos há personagens riquíssimos e não há nem tempo, nem espaço e nem oportunidade para comentá-los. E percebe-se que o próprio estilo da escrita difere, é mais próximo da narrativa das sagas.
Nessas inserções históricas, certos elementos comuns e freqüentes na “transparência do tempo” contemporâneo não aparecem, exceto a certa fixação de Padura por pés. Certamente não seria podolatria, mas... pés cansados, pés na água, pés se arrastando, visão dos pés, pés embrulhados em plástico...
E por falar em fixação, não acharam excessivas as recorrências ao comer (isto, aquilo, bem, mal, para si, para o cão...)? E ao beber (rum, rum, rum, rum...)? Pelo menos umas cento e cinqüenta doses. E ao fumar? Pelo menos uns duzentos cigarros viraram fumaça. Mas não suficientes para embaçar a “transparência do tempo”.
(*) Isto estava escrito antes de eu ler a matéria sobre Padura do Jornal Valor Econômico.
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