Torto Arado
Quando retirei a faca da mala de roupas, embrulhada em um pedaço de tecido antigo e encardido, com nódoas escuras e um nó no meio, tinha pouco mais de sete anos. Minha irmã, Belonísia, que estava comigo, era mais nova um ano. Pouco antes daquele evento estávamos no terreiro da casa antiga, brincando com bonecas feitas de espigas de milho colhidas na semana anterior. Aproveitávamos as palhas que já amarelavam para vestir feito roupas nos sabugos. Falávamos que as bonecas eram nossas filhas, filhas de Bibiana e Belonísia. Ao percebermos nossa avó se afastar da casa pela lateral do terreiro, nos olhamos em sinal de que o terreno estava livre, para em seguida dizer que era a hora de descobrir o que Donana escondia na mala de couro, em meio às roupas surradas com cheiro de gordura rançosa.
Nas profundezas do sertão baiano, as irmãs Bibiana e Belonísia encontram uma velha e misteriosa faca na mala guardada sob a cama da avó. Ocorre então um acidente. E para sempre suas vidas estarão ligadas — a ponto de uma precisar ser a voz da outra. Numa trama conduzida com maestria e com uma prosa melodiosa, o romance conta uma história de vida e morte, de combate e redenção.
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APPIO
30/04/2021 - 15:07
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Torto Arado
TORTO ARADO
De Itamar Vieira Júnior
Triste, melancólico, deprimente. Cruel, obscuro, misterioso. Revoltante, sombrio. Funesto, assombrado. Não sei mais quantos adjetivos me ocorreram ao ler, e para qualificar este Torto Arado.
Uma narrativa realista, crua, simples, direta, às vezes rude proporcionou conhecer de perto algo que eu sabia que existia, mas nunca tinha me interessado em conhecer melhor: os quilombolas. Eu conhecia as relações conflituosas entre proprietários de terras e seus ocupantes, entre proprietários, posseiros e grileiros, tanto na prática e como na teoria (trabalhei para o INCRA nos anos 70/80) “do século passado”. Entretanto, a existência de quilombolas é, para mim, algo recente e que surgiu junto com o movimento de valorização da etnia afro-descendente. Até então estavam enquadrados nas comunidades agrícolas carentes, em áreas disputadas, sem títulos, só posse precária e muitas vezes expulsos. Conhecia os horrores da escravidão humana, e da negra no Brasil, e a as conseqüências da forma e do processo da libertação dos escravos no Brasil. Mas conhecimento acadêmico.
Agora, Itamar Vieira Junior não apenas trouxe os quilombolas reais para perto de mim, mas me levou para dentro de sua comunidade. Sem teorias, sem interpretações nem justificativas, mas também sem vinganças, sem ódio, sem revanche.
O autor não é o narrador, porque quem nos conta é uma mulher. A narração é feminina, a protagonista ou as protagonistas são mulheres. E ele escreve como se elas fosse.
A estória é a estória das irmãs - unidas mais ainda por um acidente, uma desgraça - mas, sobretudo das suas famílias e comunidades no contexto histórico, social e cultural dos negros em comunidades rurais, que deixaram de ser escravos, mas nem por isso deixaram de ser servos.
É a história dos quilombolas, remanescentes de escravos, uns poucos existentes ainda hoje, passados mais de 130 anos da “libertação”. Talvez não tão puros, nem tão autênticos quanto eram ou como descreve o livro. O fato é que o livro nos deixa com muitas sensações, quase todas desagradáveis. A tristeza de vidas submetidas à crueldade, sem alternativas, melancolicamente deprimidas e, sobretudo sem esperança. O mistério e assombro de suas crenças, práticas e rituais, e a presença de encantados – espíritos – que se incorporam e até se tornam personagens, fazem obscuro o relacionamento entre personagens, vivos e mortos. Enfim, é um romance cuja estória tem todos os ingredientes para deprimir por fazer-nos encarar uma realidade tão cruel. O romance não é histórico, mas sua estória é muito real.
Por outro lado, apesar de um estilo direto e sem rebuscamentos, tive de reler alguns trechos para melhor compreensão (ou tão somente compreensão). Por várias vezes fiquei em dúvida quem ficara muda: Bibiana ou Belonísia? O uso dos pronomes, ou mesmo dos verbos sem sujeito, confundiu-me (acho que por deficiência minha), ora achando que era uma, ora que era outra. O mesmo com personagens que, ora um ser humano vivo mortal - um “cavalo”, ora um encantado – “desencarnado” - que o montava.
Poucas palavras ou expressões das línguas originais aparecem, revelando o aculturamento da comunidade, ou a intenção do autor de não reproduzir a linguagem própria. É claro que o “Jarê” provocou-me a curiosidade. Não consta de dicionários. Pesquisei. O Jarê, não é bem uma brincadeira infantil. O Jarê, de origem no Iorubá, é uma pratica religiosa de origem africana que se desenvolveu na Bahia e Chapada Diamantina, e é própria dessa região, de cujos cultos participam adultos, jovens e crianças. É essa a base fundamental da religiosidade dos personagens, dos seus entes, curandeiros e que fundamentam os fenômenos narrados.
Apesar de depressivo (ah! e ainda nesses tempos de pandemia) e, algumas vezes confuso e outras repetitivo (necessário?), aprendi, gostei e até mesmo me emocionei. Saravá a todas e todos.
quatro primeiros