Terra sonâmbula
Primeiro romance de Mia Couto, Terra Sonâmbula é uma verdadeira aula sobre a velha arte de contar histórias.
No Moçambique pós-independência, mergulhado em uma devastadora guerra civil, um velho e um menino empreendem uma viagem recheada de fantasias míticas. Um ônibus incendiado em uma estrada poeirenta serve de abrigo ao velho Tuahir e ao menino Muidinga, em fuga da guerra civil devastadora que grassa por toda parte em Moçambique. Como se sabe, depois de dez anos de guerra anticolonial (1965-75), o país do sudeste africano viu-se às voltas com um longo e sangrento conflito interno que se estendeu de 1976 a 1992.
O veículo está cheio de corpos carbonizados. Mas há também um outro corpo à beira da estrada, junto a uma mala que abriga os "cadernos de Kindzu", o longo diário do morto em questão. A partir daí, duas histórias são narradas paralelamente: a viagem de Tuahir e Muidinga, e, em flashback, o percurso de Kindzu em busca dos naparamas, guerreiros tradicionais, abençoados pelos feiticeiros, que são, aos olhos do garoto, a única esperança contra os senhores da guerra.
Terra Sonâmbula - considerado por júri especial da Feira do Livro de Zimbabwe um dos doze melhores livros africanos do século XX e agora reeditado no Brasil pela Companhia das Letras - é um romance em abismo, escrito numa prosa poética que remete a Guimarães Rosa. Couto se vale também de recursos do realismo mágico e da arte narrativa tradicional africana para compor esta bela fábula, que nos ensina que sonhar, mesmo nas condições mais adversas, é um elemento indispensável para se continuar vivendo.
Comentários
APPIO
03/09/2019 - 18:57
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Eu me lembro que, por volta
Eu me lembro que, por volta dos fins dos anos 60 do século passado (Meu Deus, como estou velho!), lia as notícias das guerras coloniais na África Portuguesa. Lembro das fotos nos jornais de um General português (seria o tal Spínola?), de monóculo e bastão, em pé num jeep, no meio do tiroteio (é o que diziam), como um cavaleiro medieval.
Eram as guerras de independência que acabaram com o “Portugal Ultramarino”. Depois, começaram as notícias sobre as revoluções internas e intermináveis nesses novos países independentes. Mas não independentes da guerra fria. Acabaram por derrotar Portugal, mas uns movimentos apoiados pela União Soviética e outros pelos Estados Unidos (uma tal de Frelimo e outra que não lembro o nome) se digladiavam, praticando matanças em disputa pelo poder. Lutaram por tantos anos que caíram na rotina e saíram dos jornais. Já não eram mais notícias.
Mas em 1990 conheci o Almeida, com quem trabalhei uns tempos. Bom cara. O que ele tem a ver com a história? É que ele tinha sido oficial do Exército Português na África, estivera sob o tal general de monóculo. E me contou passagens de arrepiar, de virar o estômago. Era essa a “realidade” que eu conhecia quando, graças ao Clube de Leitura, li Mia Couto e a Terra Sonâmbula.
(Foi aí que entendi o que era a lusofonia: foi quando precisei de dicionário para entender a própria língua!) (*)
Foi uma surpresa (positiva) ver como, num cenário de tanta desgraça e tanta miséria, é possível construir uma estória tão rica. Rica em todos os sentidos. Personagens, trama, cenários, sentimentos, conexões, mistérios, magia, reflexões.
Relata simultaneamente realidade e fantasia, tão unidas que se fundem e se confundem. (Cheguei a lembrar do Lincoln no Limbo). Interessante como, dissecando os personagens, ele mostra a cultura desse povo, seus valores, crendices e superstições.
Mas o que mais me impressionou foi a capacidade do autor de usar da forma narrativa para encontrar poesia numa realidade tão crua, inserindo centenas de frases de sentido filosófico ou de máximas, elegantemente construídas. Como por exemplo: “... tudo vai ficando noite. Reina um negro silvestre cego.”; “o sono lhe apagava a boca...”; "os nadas de nossos pratos...”; “sua voz se ajoelhava clamando...”; “entretido com nenhuma coisa”; “em cada onda o mar se despia sem nunca chegar à nudez...”; “eternamente grávida, filho-dentro, filho-fora.”; “hei de levar a estrada que não me deixa sair de mim”;” vão pisando caminhos saudosos do pé da gente.”; “... os sonhos são cartas que enviamos a nossas outras restantes vidas.”, e por aí vai.
Outra coisa curiosa – e achei enriquecedora para o texto – foi a adoção dos substantivos e adjetivos transformados em verbos: “devagarinhando”, “cambalhotando”, “patifaristando”... ou novas palavras, como “embriagordo”, “luaminosas”, “vagaluminosos”...
Gostei. Gostei muito. Depois li sobre o autor que o nome “Mia” é por causa de sua mania por gatos. Depois de ler o livro pra mim poderia ser “Ruge” Couto.
(*) E tinha um glossário no posfácio!
quatro primeiros