O tempo entre costuras
Sira Quiroga é uma jovem costureira que, na Madri dos anos 1930, se apaixona por Ramiro. Ainda que mal o conheça, decide deixar o país por aquele novo amor. Mas o destino lhe reserva uma série de surpresas, a começar pelo desaparecimento de Ramiro pouco depois de chegarem ao Marrocos. A partir daí a jovem se converte, quase sem se dar conta, numa peça-chave na luta contra o fascismo europeu da ditatura franquista em sua Espanha natal ao nazismo na Alemanha.
Comparada a Carlos Ruiz Zafón por sua prosa envolvente e pela imaginação ao combinar fatos e personagens reais com ficcionais, María Dueñas conta em O tempo entre costuras uma aventura apaixonante, na qual os ateliês de alta costura, a sofisticação dos grandes hotéis, as conspirações políticas e as obscuras missões dos serviços secretos se fundem com a lealdade às pessoas próximas e com o poder incontrolável do amor.
Comentários
APPIO
13/02/2019 - 11:58
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O TEMPO ENTRE COSTURAS, de Maria Dueñas
O TEMPO ENTRE COSTURAS, de Maria Dueñas
(Como sempre eu não sabia nada do que iria ler, inclusive, não li a contracapa)
Eis um livro bem costurado (não só na encadernação), um ótimo passa-tempo. Para lê-lo não cheguei a passar noite em claro, mas é interessante, sobretudo pelo bem alinhavado enredo, um mix entre ficção e realidade.
Dizem que as mulheres precisam falar 15.000 palavras/dia. A autora escreveu 850.000 palavras ou 1.219.800 toques. Se eu resisti aos três volumes de AA Revolta de Atlas da Ayn Rand, porque não resistiria a estas 525 páginas?
Achei “O tempo entre costuras” o texto (sério) mais feminino que já havia lido. Não pelo desfiar do rosário dos acontecimentos, ora relatados rapidamente como ponto corrido, ora rendilhando, caseando e chuleando ao mesmo tempo. Entretanto, eu o achei feminino pelas emoções retratadas, pelos sentimentos expostos, pelas intenções interditas, pela ambivalência da personalidade, pelos babados apensados aos acontecimentos, ao evaser das suas sensações, pelo controle da vontade e descontrole dos sentimentos de desejos, e até pela sinceridade com que tira os véus de certas imagens e de seus certos “recônditos”.
Mas mostra uma Espanha em pleno conflito e uma Europa esgarçando suas tensões na sala-de-provas para a eclosão da II Guerra Mundial. Embora fossem apenas o pano de fundo para urdir a trama do enredo, não me pareceu que a autora o retratou na sua gravidade: costurou um godet de voil e não um capote de laine pesant militaire.
O conflito retratado entre os convivas nos jantares da pensão, foi apenas um gentil retrato e dos mais civilizados do “nós contra eles” que a Espanha vivia. Por sinal, muito parecido com o “eles contra nós” que aqui foi lançado como pret-a-porter, verdadeiro dernière cri, mas totalmente falso, posto que já nasceu démodé.
Lembrei-me de um amigo que foi morar e trabalhar na Espanha e de lá me disse: “Caramba, os espanhóis discutem e brigam até quando estão de acordo”!
Entre Republicanos (os socialistas, comunistas, anarquistas, e outros istas) e Nacionalistas (Falangistas, Monarquistas, Catolicistas e outros istas), não havia gestos civilizados. Nem nos debates se passava a palavra para argumentação dum oponente, nem havia passa culpas de indulgências, mas só passa fora daqui. E não importava se o “outro” fosse parente, amigo, ou até irmão. Passaram a ser apenas “o inimigo”. Até maçons entraram na matança (o que eu desconhecia). O gesto mais cortez entre eles deviam ser tesouras voadoras e agulhas envenenadas.
Contudo, o fato não mencionado nem relevado pela Autora é que foram quatro anos de cruenta guerra, sem fronteiras, sem normas, sem honra. Nada menos do que 100.000 (cem mil) combatentes do lado dos republicanos morreram, e outros 100.000 (cem mil) do lado dos nacionalistas. E para ser franco (ops!), nem todos morreram como soldados, mas assassinados, executados, fuzilados, trucidados...
E o pior: estima-se que por volta de 200.000 (duzentos mil) “civis”, ou seja, a população não engajada nem nas milícias nem nos exércitos - apenas homens, mulheres e crianças - foram mortos em suas casas, nas ruas, nas escolas, nos hospitais, nos seus trabalhos e nas prisões. Ou simplesmente morreram de fome – não havia mais ratos para serem comidos.
A Guerra Espanhola foi um pré-lançamento da II Guerra que veio em seguida.
Achei que a autora apresentaria esses fatos, gravíssimos e cruéis, num desfile de predominância dos tons vermelhos de sangue - (o das ruas e não o das plazas de toro), vestindo-os com os tecidos crus da realidade. Mas ela foi romântica, usou cores as mais suave em suas descrições - claras como as areias do Marrocos - sem as estampas berrantes, como as figuras, em preto e branco, do “Guernica”. Isso pra mim foi também o toque feminino.
A estória que conta é uma saga. Com aventuras, encontros (fortuitos), desencontros (poucos) e reencontros (muitos). Coincidências é que não faltam. Com moldes de lugares, personagens e acontecimentos reais (aliás, como boa acadêmica menciona a bela bibliografia e as pessoas consultadas), a autora se vestiu totalmente da personalidade da sua personagem.
Aliás, a mesma personagem não pareceu sempre ser a mesma. Trocava a sua indumentária/personalidade segundo as circunstâncias. Parece que a autora adotou para o manequim da sua Aquira alguns recortes do seu conterrâneo, Ortega y Gasset, e seguia suas máximas: “Viver é tratar com o mundo”, “O amor procura, o entendimento encontra”, “A verdade não é relativa, mas a realidade, sim”, e a mais famosa (e adaptada): “ A mulher é a mulher e suas circunstâncias”.
Iniciado como uma biografia de caráter pessoal deu o tom de uma narrativa factual crível. Mas até as ducentésimas paginas não me empolgou. Entremeando a narrativa dos fatos (não os fatos portugueses) com os longos momentos de reflexões, a descrição detalhada dos seus pensamentos que se esvoaçavam por parágrafos, as menções de longas listas (Oi, Chris, leu o Ecco?), a descrição de lugares, o detalhamento dos trajetos e roteiros (lembrando-me Dan Brown), e sobretudo a retrospectiva do que já havia sido contado, como o relato ao Delegado repetindo páginas, me cansou. O excesso de texto levou a exageros, como explicar e descrever o que é uma pirâmide (quem não o sabe?), ou incorrer em incorreções como “ajustar a saia” (se estava usando terninho?) Não esmoreci.
Seus personagens não reais são mais reais. Foram construídos de forma muito bem estruturada. A Candelária, a Mãe, o Delegado, os policiais, o vizinho Félix e a Mãe, o noivo (coitado), o cafajeste Armindo Arribas (excelente a escolha desse sobre-nome!), os pensionistas, Já os personagens reais não foram tão reais. Distantes, talvez por isso mesmo: Berghbeder, Serrano Sugñer, Samoel Hoare, Hillgarth e Marcus (seriam estes reais?), estavam num figurino justo demais.
De menina “órfã” de pai, simples, ignorante, seduzida, ludibriada, roubada, incinerada nos seus sentimentos, vemos renascer uma Fenix: Empreendedora, elegante, sofisticada, sensualissimamente controlada, batalhadora sem dúvida.
Apesar das desventuras, Sira Quiroga Martins também teve sorte. Muita sorte: em apenas três dias seu atelier (sem email, whatsapp, tweeter, nem o contemporâneo boca a boca) já começa ter clientela crescente; pelo pai, tardia, mas oportuna e surpreendentemente ter lhe dado recursos; e sorte por encontrar pessoas que a ajudaram (a Candelaria que a acolheu, o Delegado Claudio Vázques que a acobertou, o vizinho Félix que a instruiu e desenhou a Dolores que a amadrinhou, o Marcus que a salvou, a Manoela que a ajudou...)
Sua cooptação para a espionagem lança uma nova coleção de acontecimentos: m ais emocionantes, mais intrigante, fazendo retomar interesse pela leitura. Personagens com vida mais mundanas, lugares e eventos sociais bem descritos, personagens mais intrigantes, dão um novo talho, dando mais dinâmica à narrativa.
Mas certas ambigüidades permanecem. Ora inocente e desinformada (Sara?), ora sagaz e arguta (Arish Agoriuq?). Mesmo nessa nova roupagem, comete insensatezes, e minúsculos pontos fora (lamentar “nem uma ligação” quando não tinha telefone, referir-se a Franco como Caudilho antes dele sequer ter assumido a liderança).
O que permanece é o lado feminino do personagem: um noivo conveniente, bonzinho, certinho e por isso mesmo descartado. Um macho exuberante, amante inflamado e mau caráter como todo conquistador, deixou marcas indeléveis na sua mente e corpo. Seus olhares e observações sobre outros personagens masculinos refletem o filtro analítico do ver feminino. O inebriante sabor do beijo envolvente do português Manoel Silva é imediatamente substituído pelo ódio pelo simples fato dele negociar com os alemães (?). Por fim a aproximação, a contradição entre a desconfiança e o desejo por Marcus, deixou marcada uma frase forte em todo o livro na intensa frase quando ela recorda quando o levou para a cama e lhe deixou: “seu sabor em minhas entranhas”.
Desculpem-me se isso está longo demais. Afinal, a autora nos entregou três estórias consagradas: A Gata Borralheira, A Cindelera, e Mata Hari.
quatro primeiros