Nunca houve um castelo
Em seu segundo romance, Martha Batalha recria a trajetória dos descendentes de Johan Edward Jansson, cônsul da Suécia no Brasil que em 1904 construiu um castelo em Ipanema.
Rio de Janeiro, 1968. Estela, recém-casada, mancha com choro e rímel a fronha bordada de seu travesseiro. Uma semana antes ela estava na festa de Réveillon que marcaria de modo irremediável seu casamento. Estela sabia decorar uma casa, receber convidados e preparar banquetes, mas não estava preparada para o que aconteceu.
Setenta anos antes, Johan Edward Jansson conhece Brigitta também em uma festa de Réveillon, em Estocolmo. Eles se casam, mudam-se para o Rio de Janeiro e constroem um castelo num lugar ermo e distante do centro, chamado Ipanema. Nunca houve um castelo explora como essas duas festas de Ano-Novo definem a trajetória dos Jansson ao longo de 110 anos. É uma saga familiar embebida em história, construída com doses de humor, ironia e sensibilidade. A riqueza e a complexidade dos múltiplos personagens criados por Batalha permitem tratar de temas que se entrelaçam e definiram a sociedade brasileira nas últimas décadas, como o sonho da ascensão social, os ideais femininos e feministas, a revolução sexual, a reação ao golpe militar, a divisão de classes, a deterioração do país.
Um romance comovente sobre escolhas e arrependimentos, sobre a matéria granular da memória e as mudanças imperceptíveis e irremediáveis do tempo.
“Martha Batalha sabe contar histórias. Num panorama literário carregado de selfies, ela consegue virar a câmera em outra direção, usa grandes angulares e zooms com igual habilidade, e acaba compondo o vibrante retrato de um bairro e dos seus tempos.” – Cora Rónai
Trecho:
Às três e vinte da tarde do sábado, 6 de janeiro de 1968, com ventos noroestes, céu parcialmente nublado e temperatura em declínio, alheia ao forte cheiro de bife passado há pouco na manteiga e à voz em uníssono dos muitos Silvio Santos nas tvs dos apartamentos próximos, Estela mancha com choro e rímel a fronha bordada do travesseiro novo. Os cabelos longos cobrem seu rosto, as unhas vermelhas agarram um lenço de linho. Os pés calçados pendem para fora do colchão, até ela livrar-se dos saltos e encolher o corpo, levando os joelhos para junto do queixo. Estela não pensa, só repete por quê, meu Deus, por quê, tentando encontrar no caos da sua tristeza o motivo de tanto desgosto.
Comentários
Lavinia Haddad
05/03/2021 - 15:24
permalink
Nunca houve um castelo
Acabei de ler "Nunca houve um castelo" e, assim como foi com "A vida invisível de Euridice Gusmão", ficou um gostinho de 'quero mais'. Como li no Kindle, nao percebei que já estava no fim, porque na verdade não queria que acabasse. É uma leitura tão gostosa, tão simples, tão envolvente, que não conseguia parar. As personagens, as descrições de época, os lugares, tudo é muito familiar. Impossível não me identificar e não me lembrar da minha adolescência nos anos 80 (Clodovil, TV Mulher, Silvio Santos, almoços de domingo ...), um passado recente ainda tão presente. Impossível não lembrar da minha mãe, que também tinha uma baixela de prata no aparador da sala, e do meu pai, que comprava Coquetel na banca de jornal até o final de sua vida. Martha Batalha fala de sentimentos, família, política e sociedade de forma leve, mas faz também uma crítica contundente, que nos leva a refletir sobre todos esses assuntos. E, afinal, não seria este o objetivo da literatura? Sem dúvida, já é uma de minhas autoras favoritas da atualidade.
Rose Mafra
07/03/2021 - 16:15
permalink
Nunca houve um castelo
Tb ja lie amei!!! assim como amei A vida invisivel de Eurides Gusmao.... tenho certeza que todos se identificam de alguma forma com algum personagem, cenario, etc... e a forma simples e ao mesmo tempo c
da Martha nao nos deixa colocar o livro de lado, antes de terminar.... tb li no kindle e nao vi que tinha acabado.... apesar de achar que era mesmo o fim, mas q tb poderia ser o comeco ou a metade do livro.... simplesmente demais!!
APPIO
10/03/2021 - 18:54
permalink
Nunca houve um castelo
Nunca houve um castelo
De Martha Batalha
Está aí um romance que parece despretensioso, mas não é. Pelo contrário. É amplo, rico, profundo, atual, histórico... E revela uma autora série, apesar do bom humor na narrativa. Séria na medida em que – depois de ler vim, a saber – fez profunda pesquisa nas mais diversas fontes para retratar épocas. E não épocas históricas, seculares. Mas épocas registradas em anos precisos. Por isso que ao ler, eu, contemporâneo de muitos fatos e de grande parte da historia narrada, senti-me íntimo daquelas descrições precisas. Dos automóveis dos meus tempos (o Veraneio, o Corcel, o AeroWillys), dos perfumes que usei (o Rastro do Aparício), da imobiliária da época (Julio Bogoricin), do que eu via nos programas de TV (o Clodovil, a Marta Suplicy, a TV-Mulher do Newton Travesso), as revistas (estive no lançamento da revista Veja)... do Rio de Janeiro que conheci (pouco) antes do tráfico, e da própria estética da época dos anos sessenta/setenta (dourados?).
Um bom escritor (parece que alguém já disse isso, e se não disse eu acho isso) é aquele que mantém o leitor atento e interessado mesmo na descrição do corriqueiro, do cotidiano, do trivial, do rotineiro.
E agora acho que um ótimo escritor é o que, além disso, e através disso, nos oferece um prato cheio de registros e interpretações históricas (mas com a ótica contemporânea daquele tempo); uma profunda percepção e analise sociológica (os comportamentos da sociedade em geral e de seus estamentos em particular); e uma análise psicológica implacável dos seus personagens. E tudo isso sem o viés acadêmico chato e sem veleidades das longas análises teóricas. Pelo contrário.
Este romance é escrito com frases curtas. Com ordem direta. Diretamente à sensibilidade do leitor. Consegue com a técnica de fatias de vida (os “slices of life” em moda na época) compor o mosaico que retrata perfeitamente um ambiente, uma casa, um lar, uma rua, uma feira, um almoço de sábado, um enterro, um bairro, uma cidade, um país. Mesmo e, sobretudo ao retratar pessoas, consegue revelar por fora e por dentro.
Se a rotina constrói a narrativa, a narrativa não é rotineira. É recheada tanto de penetrantes criticas, como de sacadas de humor, que quebram não a seriedade, mas a austeridade da leitura. Hilárias passagens levam o leitor a rir (pelo menos a mim levou): o cocô do cachorro na área de serviço (quando o tema era a independência feminina e a adaptação do homem (?) à nova estrutura familiar); frases como “essas pessoas não vivem, elas defumam”; o patriotismo com a frase “Como se o avô tivesse nascido às margens do Ipiranga no Dia da Independência”; com a necessidade de fazer a dentadura. Hilários ou não, os muitos detalhes insignificantes não parecem desnecessários, mas enriquecem a narrativa e até criam certa expectativa.
Até o charme da internacional de Ipanema contada em livros e cantada em versos e canções, tão cult e idealizada como berço da bossa nova e de uma nova cultura, na verdade era e é um bairro. Em nenhum momento parece mistificar. Mas também não desmistificar. Relata fatos, não esculpe mitos.
O romance revela autora culta, informada, elegante, versátil, série ao documentar e criativa ao narrar, dotada de acuidade aguda como diriam os barrocos. Ler as duzentas e cinquenta páginas foi ter duzentos e cinqüenta momentos de prazer.
Mais uma bela a escolha deste Grupo.
quatro primeiros