A mulher de trinta anos
Antes de Emma Bovary, antes de Anna Kariênina, existiu Julie.
Contrariando os conselhos do pai, ela julga-se apaixonada e decide se casar ainda muito jovem com um coronel do exército napoleônico. Em pouquíssimo tempo, descobre-se infeliz no casamento e na maternidade, presa a obrigações que não pretende abandonar. A isso se seguem as paixões por outros homens, e anuncia-se o destino trágico da protagonista. Mas A mulher de trinta anos não é a história particular de Julie, e sim a de alguém em quem convergem as contradições do que representava ser mulher no século XIX e, por extensão, as contradições da própria sociedade moderna. Com sua reputação de grande conhecedor do coração feminino, Balzac, que deveu sua formação às diversas mulheres mais velhas com quem se relacionou, aponta neste livro para a profundidade da alma que só pode vir da experiência.
"Um dos mitos fundadores da história da condição feminina. Com A mulher de trinta anos, o tema imemorial da emencipação das mulheres sai da fábula ou da ilusão cômica para se inserir no contexto da sociedade liberal surgida da revolução de 1830. A liberdade política é também, para a mulher até então encerrada em seus deveres de esposa e de genitora, o direito à independência moral e ao desejo. 'Aos trinta anos', a heroína de Balzac descobre que ela não só pode ainda ser amada como não lhe é mais proibido tornar-se um ser humano completamente à parte. E ao preço de quantas lutas!" (apresentação das Edições Gallimard para a publicação da obra, 1977).
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APPIO
05/10/2020 - 18:57
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A mulher de trinta anos
A mulher de trinta anos
Honoré de Balzac
A expressão balzaquiana eu conheço desde criança. Ouvia essa expressão na conversa dos adultos. Para mim significava uma mulher não mais tão jovem. Com o tempo, a esse adjetivo parece ter sido acrescentado mais outro sentido: o de uma mulher, além de não tão jovem, ter tido “experiências” às vezes no sentido de experiências amorosas. E esse tipo de experiência, no plural, nos anos 50 tinha certa conotação moral (ou imoral). Só na adolescência soube ser “balzaquiana” um “adjetivo derivado”. Derivado de Honoré de Balzac, um expoente da literatura francesa, que no século XIX inicia o movimento da literatura realista. Quem me ensinou isso foi Madame Rose. Ah! A professora, uma maravilhosa “balzaquiana”, que levava os seus ginasianos a sonhar mais com ela do que com os autores e personagens da literatura francesa. Passadas seis décadas, o CLS me proporciona ler o que deveria ter lido há muito mais tempo. Para, de fato, conhecer a obra de Balzac... (e me recordar da Madame Rose...) Mas os contextos de época são diferentes e a tudo condicionam, como a expectativa de vida média. Hoje no Brasil está acima de 77 anos. Nos anos 50 não chegava aos 50 (anos). Nas primeiras décadas do século XIX a esperança de vida na Europa Ocidental rondava os 33 anos. Na França, em 1830 era de 38 anos. (1) Quando Balzac escreveu este livro, a mulher de 30 anos teria vivido em torno de 78% da sua expectativa de vida. Hoje significa uma mulher de 60 anos!
Ler “A mulher de 30 anos” levou-me à primeira metade do século XIX, conduzido por “um Historiador dos Costumes”, como o próprio autor se reconhece. (2) Historiador e crítico, pois critica implícita ou explicitamente, às vezes de maneira contundente, as regras sociais, as imposições dos costumes e os valores morais da sua época.
Li que Balzac foi introdutor do realismo na literatura francesa. Mas seu texto é muito romântico ao descrever ambientes, sentimentos, pensamentos. Aliás, a penetração nas mentes dos personagens impressiona, assim como a percepção dos mínimos detalhes do comportamento: da sutileza das palavras, do movimento de um olhar, do brilho nos olhos, de um sutil movimento de mãos... tem a acuidade de um verdadeiro psicanalista, antes da invenção da psicanálise.
Mas Balzac é um sociólogo também e quase precursor de Comte ao fazer a análise dos valores, dos hábitos e costumes, das leis e normas da sociedade e o impacto disso sobre os indivíduos, principalmente sobre as mulheres, justificando seus pensamentos e contradições e, sobretudo, o seu sofrimento. Uma coisa eu tenha certeza: Balzac entendia as mulheres de seu tempo. Entenderia as de hoje? Certamente... sim.
No livro ele flagra as contradições do comportamento de Julie, refletindo as contradições dos costumes da época e os anseios femininos. Faz, há quase duzentos anos, o discurso da falência do casamento sem amor (P75). E uma constatação sociológica: “a sociedade só pode existir pelos sacrifícios individuais exigidos pelas leis”. E as maiores sacrificadas eram as mulheres. Se é atual colocar em xeque a instituição do casamento, ele antecipou Betty Friedam e o movimento de libertação feminina em cento e cinqüenta anos. Mas a mulher livre de Balzac não era libertina, nem a igualdade no gênero a masculinizava. Ela era doce, pura (e se havia a infidelidade era conseqüência do abandono emotivo e psicológico e da incompreensão de seus anseios e sentimentos). Sutilezas dos diálogos inteligentes (e dos comentários mais ainda) eram repletos de emoções e as palavras de poética romanesca... “Vou lhe pedir que torne santa e pura a vida que me restituiu. Aqui nos separamos...”. Embora tratasse um tema realista, o romantismo da escrita permeia todas as descrições, as reflexões, os devaneios... Para mim é uma narrativa repleta de romantismo.
Entretanto, senti que a narrativa da vida de Julie muda, estranhamente, a partir do capítulo 4 - O Dedo de Deus –, com acontecimentos mais pertinentes a uma saga: (a morte acidental de um filho (assassinato?), a aparição no meio da noite de um assassino fugitivo, a “cantada e a fuga” - que não foram de Bach – da filha, as coincidências da viagem do pai, a abordagem do navio pirata, o capitão e sua mulher, e do encontro na pensão... e apesar de dar continuidade da história, pareciam fazer parte de outro livro. (3) Um livro de aventuras, e de fim trágico.
Nem por isso o livro deixa de ter o mérito de passagens e frases ricas, quer pela forma quer pelo conteúdo, que são referencias da boa escrita. Como os vários parágrafos da definição da Paixão, pelo pai de Julie (P.35), profundamente verdadeira. Ou a sutileza dos comentários políticos. Os longos parágrafos das análises e reflexões que contém, simultaneamente, várias idéias, opiniões, constatações, (P.100) às vezes levando à releitura para entendimento. Ou a contundência das criticas (“Casamento é uma prostituição legal” (P110); “... ao homem a liberdade, e à mulher os deveres.”; “no casamento a moça é vendida pelo resto da vida” (P.116); “a jovem e a mulher: uma cede, a outra escolhe.” (P.127); “a reclusão é a única salvaguarda da moral doméstica”; ou as idéias românticas “1789 desvaneceu o encanto do amor” (P.121; “ser amada é flutuar entre mil sentimentos contrários” (P.136; “a curiosidade sempre defende a causa dos amantes”)...
Li até a última página. Entretanto, o livro, para mim, terminou na página 226, porque li a nota indicada. (4). E valeu pelos três primeiros capítulos.
Saboreei a narrativa do realista romântico, do moderno mas saudoso do antigo regime, do homem feminista, do nostálgico atento ao seu cotidiano... e saboreei a lembrança da minha professora de Frances, aquela balzaquiana da minha adolescência que, hoje para mim, seria apenas uma jovenzinha sem a graça e a beleza de uma mulher adulta. Vive le Balzac!
quatro primeiros