Madame Bovary
Considerado por muitos críticos e estudiosos como a maior realização do romance ocidental, Madame Bovary trata da desesperança e do desespero de uma mulher que, sonhadora, se vê presa em um casamento insípido, com um marido de personalidade fraca, em uma cidade do interior. Publicado originalmente em capítulos de jornal, em 1856, o romance mostra o crescente declínio da vida - interna e externa - de Emma Bovary, que figura na literatura ocidental no mesmo degrau que Dom Quixote, o personagem de Cervantes. Ambos não se conformam com a realidade em que vivem e tanto o cavaleiro da triste figura quanto a desolada dona-de-casa oscilam entre o status de herói e de anti-herói.
Madame Bovary é sem dúvida a obra-prima de Gustave Flaubert (1821-1880), escritor francês que como nenhum outro na literatura ocidental levou o estilo à perfeição, reescrevendo inúmeras vezes o texto e procurando, como um artesão, o melhor encaixe das palavras. Flaubert identificou-se de tal forma com a sua protagonista que declarou: 'Madame Bovary, c'est moi' (Madame Bovary é eu). Na sua maior obra, o escritor atingiu um grau de penetração dentro da mente da personagem principal como nunca ocorrera até então e abriu caminho para as aventuras psicológicas dos modernistas como Virginia Woolf, Marcel Proust, Clarice Lispector e James Joyce. Não por coincidência, Proust considerava Flaubert como um escritor de ruptura, por ter dado sentido e substância ao romance de análise psicológica.
Curiosidade: Flaubert foi levado a tribunal, acusado de ofensa à moral e à religião. O Tribunal absolveu Gustave Flaubert mas o mesmo procedimento não foi adotado pelos críticos literários puritanos da época.
Comentários
APPIO
10/04/2019 - 17:11
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Madame Bovary
Perdoem-me a acidez, mas nestes tempos em que: novelas exibidas em horários vespertinos parecem ter por roteiro demonstrar os mais de 40 “tipos de opções e desvios sexuais”; professores incapazes de ensinar os rudimentos da matemática e da língua para mais de 90% dos alunos, mas são orientados a “ensinar sexo” para crianças com menos de até 5 a 6 anos; TVs abertas em horário vespertino exibem “dançarinas” (?) se movimentando como se a platéia fosse de proctologistas; e na Internet aberta abundam canais de sexo explícito; então, nestes tempos atuais... essa estória de Gustave Flaubert parece tão inocente como um catecismo (e não aqueles do Carlos Zéfiro).
Foi escrito num momento (meados do XIX) em que de revoluções sociais e políticas que varriam toda a Europa contra a crise econômica, contra os regimes monárquicos - que se restauravam após efeitos da Revolução Francesa-, contra os valores da elite e do poder da Igreja Católica. Nessa época, em termos artísticos, se esgotava a Estética Romântica e Flaubert parece ser um dos iniciadores da nova estética literária: o Realismo.
Flaubert começa contar a estória da Madame Bovary, publicando em capítulos, num estilo que expunha a realidade dos fatos sem valorizar as fantasias românticas. Muito pelo contrário. Por contar essa estória cujo tema era o adultério, onde a protagonista não era a heroína elevada à pureza romântica e as descrições eram cruas como a realidade, o autor foi processado por ofensa à moral pública e religiosa.
Mas, como os tempos estavam mudando e um novo liberalismo se prenunciava, ele e seu editor se safaram da cadeia. E o livro se tornou sucesso, por décadas e décadas. Transformando-se num dos ícones da literatura.
Eu conhecia o ícone, mas nunca o havia lido.
Além da estória em si de Emma Bovary a mim o livro mostrou muito mais. Mostrou com imagens muito definidas como e o que era a França da época. Não aquela de Paris, mas a do interior, a rural. Mostra a sua geografia, as suas atividades econômicas, os serviços, a arquitetura, as comunicações, a gastronomia, a moda, os rituais, as hierarquias e papéis sociais, os valores morais, o cotidiano das pessoas comuns...
Acho que fica evidente a profundidade da análise psicológica (a descrição dos sentimentos e comportamentos, a identificação das paixões e suas conseqüências, a fantasia no condicionamento das atitudes, a progressão de um delírio...). Mas, curiosamente, o “Pai da Psicanálise” nasceu exatamente no ano em que o livro foi publicado. Portanto, e as teorias Freudianas só começaram a ser conhecidas... meio século depois.
Apesar do estilo realista e do assunto, o autor sequer resvala o vulgar. Mesmo tratando de adultério, de situações amorosas e eróticas, de destacar a libido incontrolada, em todo o texto não há uma única palavra explícita ou mesmo deselegante. Ele cria imagens e alusões até para sugerir o óbvio. Como a imagem dos pedaços da carta rasgada sendo lançados ao vento pela janela da carruagem em movimento. Assim, diz muito mais do descrever o que ocorria no interior da carruagem. Parece até reminiscências do romantismo ainda presentes no autor, como ao falar das paisagens, bucólicas, ou na forma de descrever sentimentos e pensamentos.
A forma da narrativa nos prende à leitura– ora descrevendo o interior dos personagens, ora descrevendo o seu entorno e as suas circunstâncias, e também com a bem armada alternância da narrativa (como, por exemplo, entremear alternando trechos do discurso do Lieuvalin com os trechos da “cantada” (em alto estilo) do Randolphe.
O estilo “realista” se revela com toda a força ao final do livro, com a descrição da situação da decadência, do suicídio, da agonia, do velório, do enterro, e do luto.
Embora pudesse o livro estar classificado em prateleiras de “romances”, “romances de amor”, “erotismo”, etc., creio que poderia também receber etiquetas de “histórias de vidas”, ou “romances psicológicos” e por que não “tragédias humanas”? Sim, porque ao fim sobra uma grande tragédia: seus capítulos finais, narrados com um realismo chocante, são de desespero, de destruição, de ironia e morte.
Da jovem pura e sonhadora, sobra uma mulher irresponsável, mentirosa, leviana, sedutora, manipuladora, invejosa, caloteira, voluptuosa, traidora... Mas Emma foi vítima de suas fantasias. Fantasias de aspirações românticas, por vida de privilégios, de paixões arrebatadoras, por um amante-amor eternos. E sua realidade nunca correspondia a elas. Quanto mais exaltadas as fantasias, mais melancólica sentia a vida.
Ouvi de um psiquiatra: “Todos nós temos fantasias. O equilíbrio mental está em como lidamos com elas”. Emma não soube lidar.
Por fim: caberia um julgamento moral à Emma?
Então, parodiando a parábola da condenada à lapidação: “Quem nunca teve uma fantasia, que atire a primeira pedra.”
P.S. Ironias da Tradução: O nome de “Canivet” dado ao médico amputador me pareceu um trocadilho. Mas não foi. Nosso “canivete” em Frances é “couteau de poche.” Fui conferir no dicionário e não existe “canivet”. O humor de Flaubert não era tanto.
quatro primeiros