Herança
“Da França de 1873 ao Chile de 1973, da filoxera a Pinochet, o romancista narra a saga de uma família dividida entre duas culturas e duas línguas, e atingida por duas guerras mundiais. Mágico.”
Le Figaro
A casa da Rua Santo Domingo, em Santiago do Chile, escondida detrás de seus três limoeiros, já abrigou várias gerações da família Lonsonier. Vindo das montanhas francesas do Jura com uma videira num dos bolsos e alguns francos no outro, o patriarca ali se instalou no final do século XIX. Ali também seu filho Lazare, de volta do inferno nas trincheiras, viverá com sua esposa, Thérèse, e construirá em seu jardim o mais bonito dos aviários andinos. Ali também nascerão os sonhos de fuga de sua filha, Margot, uma pioneira da aviação, e ali ela se unirá a um estranho soldado do passado para dar à luz Ilario Da, o revolucionário.
Muitos anos depois, um drama sangrento atingirá os Lonsonier. Apanhados por uma tempestade, eles voarão juntos em direção ao seu destino, carregando como herança apenas a misteriosa lenda de um tio desaparecido.
Neste deslumbrante afresco que se desenrola em ambos os lados do Atlântico, Miguel Bonnefoy pinta o retrato da linhagem de uma gente desenraizada, cujos terríveis dilemas, habitados pelas feridas de uma grande história, revelam a sua profunda humanidade.
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APPIO
09/06/2022 - 16:40
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HERANÇA
HERANÇA
de Miguel Bonnefoy
Como o mundo da literatura é tão infinito, tão rico e tão diverso! Esse foi o meu pensamento ao concluir a leitura da última página deste “Herança”.
É a história da trajetória de uma família, como a história de tantas outras famílias contadas em muitos livros. Esta, porém, tem ingredientes que a tornaram, para mim, diferente - tanto pelos fatos narrados, como pelos personagens, como pela própria narrativa.
São quase cem anos percorridos por três gerações de mais de uma família que se unem, em dois países de dois continentes. De início, pensei que a história iria se circunscrever à vinicultura francesa, que sabia ter sido dizimada por uma praga e mudas sadias foram trazidas para a América, onde se adaptaram, e dessas mudas foram geradas as sadias que retornaram ao velho mundo, fazendo renascer novamente os vinhedos de França (e de outros países também). Mas isso foi apenas uma pequena fagulha de criatividade do autor para elaborar o romance. Apenas um ponto de partida. E de chegada, afinal. Ao final.
Os personagens são ricos, pelas excentricidades, circunstâncias e atitudes.
Começa pelo nome da família, adotado como fruto da ignorância do idioma entre o personagem inicial e o notário de alfândega: “Nome”? E ele diz onde nasceu (Lons-le-Suier) e aí recebeu um segundo batismo: virou Lonsonier e adotou esse nome da família a partir daí. Várias circunstâncias ocorrem, algumas hilárias.
Entre os personagens há um Xamã meio fajuto, mas que dá sorte e acerta (às vezes). Há uma praticante de falcoaria conhecida num pic nic vira a esposada por Lasare, filho do primeiro Lonsonier, que foi à França lutar na Primeira Guerra Mundial. Outro egresso de França, Étienne, chega ao Chile. Sua bagagem: trinta instrumentos de música. Constrói escola gratuita de música e disso vive, forma muitos músicos até a morte com direito à estátua em praça pública. (Possivelmente inspirado no “Sistema” de ensino gratuito de música da Venezuela, que gerou um Dudamel).
As coisas evoluem. Tereza, a falconera, casada cria dezenas de pássaros dentro de casa (soltos, até fazer um viveiro); o Xamã revela forma de curas e levitações (depois confessa fraude); uma jovem resolve construir um avião no quintal que não consegue voar. Entretanto, décadas após foi restaurado e voa, para o fim da historia. Essa ânsia de voar a leva a pilotar aviões de combate da França contra a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Enquanto que na Primeira Guerra Mundial seu pai encontrou um conterrâneo chileno, porém na trincheira inimiga. Ele é salvo, mas não salva o conterrâneo. O morto tinha um filho. Adulto, torna-se parente.
Como pode se notar, o enredo é bem intrincado, havendo várias coincidências,
Entretanto, a maneira pela qual é escrito é extremamente atraente. De uma objetividade precisa, o narrador não se envolve nem no enredo nem com os personagens. Sua postura é de um repórter imparcial que relata fatos. Não se estende em reflexões que os personagens tinham ou poderiam ter. O narrador não opina, apenas descreve. E descreve com a habilidade e com expressões precisas. Sem a narrativa seguir o tempo cronológico dos fatos, estes não se perdem nem se confundem: se entrelaçam. E o que começou num vinhedo de França no XIX, deságua no Chile de Allende e é quando a objetividade descritiva das torturas praticadas no início do governo Pinochet é revoltante. A narrativa torna-se tensa, as conseqüências implacáveis, as esperanças destruídas.
Até certo ponto da leitura eu sentia que a história poderia ser certo tipo de biografia (possivelmente baseada em fatos reais) e romanceada, pela forma da escrita: objetiva, clara, parágrafos curtos e ordenados, com detalhes sem excesso, mas significativos, enfim um relato, apesar de situações tão incomuns ou mesmo improváveis.
Estou seguro de que o autor é um poço inesgotável de reviravoltas, cativante como um tribuno e esperto como uma cartomante. Sabe cuidar bem das pausas induzir silêncios de tensão narrativa, conter a emoção de um personagem para não estragar sua dinâmica, explicar sem dizer, inventar um truque para reacender o relato e montar uma paisagem tão real, tão fiel, que seus leitores tenham a sensação de estarem ali, inteiros.
Esse parágrafo anterior brilhantemente escrito não é meu!
Eu apenas reproduzi o que ele escreveu sobre um personagem, que possivelmente era ele mesmo.
Está na página 136, § 2º.
quatro primeiros