Amar, verbo intransitivo
Fraülein, a professora de amor, é uma personagem marcante da Literatura. Uma heroína independente em um mundo masculino. Nesta história de sedução de um adolescente por uma mulher madura, Mário de Andrade capta como poucos os mistérios da alma feminina. Em Amar, verbo intransitivo – IDÍLIO, a alemã se ocupa da instrução dos filhos dos Sousa Costa. A pele rosada, os olhos pouco profundos, a mecha de cabelo loiro presa cem vezes e que torna a cair despertam, aos poucos, o desejo de Carlos. Logo, o menino se vê aprisionado por um sentimento para além do pouco interesse pelas aulas de alemão. O enredo arrancou aplausos de modernistas e críticas de conservadores em 1927. O romance mostra o experimentalismo de Andrade, que se consolidaria em Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Ao tocar em tema tão polêmico, a presente obra atrai até hoje o interesse dos leitores. Em 1975, o livro inspirou o filme Lição de Amor, de Eduardo Escorel.
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APPIO
08/03/2022 - 09:26
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Amar, verbo intransitivo
Amar, verbo intransitivo
de Mario de Andrade
Muito ouvira falar do “amar, verbo intransitivo”, mas só agora - graças a mais uma feliz escolha do CLS - o li.
E para entendê-lo procurei saber ou imaginar o que era São Paulo - e particularmente o bairro de Higienópolis - onde se passa a maior parte da estória, quando Mario de Andrade o escreveu (1923/1924).
Só sabia da origem e sentido do seu nome: higiene+polis - primeiro bairro de São Paulo (seria também do Brasil?) com infra-estrutura sanitária. Mas não sabia que fora lançado em 1893, por empresários alemães, como um loteamento todo urbanizado, com toda infra-estrutura urbana instalada e até com avenidas de acesso (hoje a Higienópolis e Angélica), com lotes de no mínimo setecentos e mil metros quadrados. E claro, destinados a elite paulistana que crescia econômica e vertiginosamente.
Li que São Paulo recebera e ainda recebia nos anos 20 um fluxo enorme de imigrantes e passava por rápida transformação, adotando os aspectos das cidades européias desenvolvidas e com os olhos voltados para a sua nova elite (bem sucedidos e tradicionais cafeicultores, novos industriais, imigrantes enriquecidos...).
Num ensaio (*) li algo que me pareceu definir bem: “São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem européia, nem nativa; nem era industrial, apesar do volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era tropical, nem subtropical; não era ainda moderna, mas já não tinha mais passado. Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê-lo como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados.”
Entretanto, se a cidade estava se modernizando, a sua cultura e, principalmente a sociedade, ainda era conservadora, haja vista a reação negativa que teve a Semana de Arte Moderna em 22. Tenho impressão que na segunda década do XX o romantismo ainda persistia nas preferências literárias. Então, nessa sociedade que ainda cultuava como ideal a Machado de Assis, Castro Alves, José de Alencar, Gonçalves Dias, e outros, “Amor, verbo intransitivo” deve ter chocado muita gente, pela forma e pelo conteúdo.
Ora, ainda hoje - mesmo passados um século e implantada uma liberalidade sem igual - certamente chocaria muitas mães e pais de família propor contratar uma profissional para, dentro da própria casa, ensinar “aquelas coisas” para um rapaz. Imagine naquela época.
Mas, o assunto que poderia ser um tema tratado sob o realismo e, portanto até com crueza, é tratado com sutileza, elegância, e até ternura. Creio terem sido o tema e a forma tratados em abordagem e estilos inéditos.
Quanto à forma, foi curioso ver como o autor intercala a narrativa com textos fora da estória e que parecem dialogar com o leitor (“Não vejo razão para me chamarem vaidoso se imagino que meu livro neste momento tem cinqüenta leitores. Comigo 51...”). Ou dialogar com a própria personagem (P27) (É coisa que se ensine o amor?... ela crê que sim.”).
Há apontamentos que parecem terem sido feitos no rascunho para ele próprio ou até mesmo ao leitor como um grande aposto e que permaneceram no texto final, intencionalmente. (Aqui o leitor começa a ler este fim de capítulo do lugar em que a frase do etc. principia. E assim continuará repetindo o cânone infinito até que se convença do que afirmo. Se não se convencer, ao menos convenha comigo que todos esses europeus foram uns grandessíssimos canalhões).
E como recurso para ser discreto e ao mesmo tempo intrigante, o autor dialoga com o leitor, diante da cena em que Carlos vai ao
“enlace” noturno com a Fraulein: “Aqui devem se trocar naturalmente umas primeiras frases de explicação – se ele der espaço tanto entre os dois! – Porém obedeço a várias razões que obrigam-me a não contar a cena do quarto. Mas como nos será possível dormir, ao leitor e a mim, ambos naquela torcida pelo triunfo de Carlos, vamos gastar este resto de noite resolvendo uma questão pançuda: Quais eram de fatos as relações entre Fraulein e o criado japonês? Inimigos? Quem me falou que eles se entendem?...”
Não sei se inovava, com várias formas de escrita não muito convencionais para a época.
Também não sei se como crítica ou como constatação sobre as características dos alemães, o autor parece conjugar dois estereótipos germânicos: o homem-do-sonho e o homem-da-vida ideados pela Fraulein, mas na pratica era o ser sonhador e o ser pragmático do humano.
Entretanto, ele registra aquilo que eclodiu uma década após, com o nazismo: o racismo inerente ao povo alemão. “Vejam, por exemplo, a Alemanha quede raça mais forte? Raça superior, como ela Fraulein. Os negros são de raça inferior. Os índios, também. Os portugueses também...”.
Agora, o autor não foi nem um pouco modesto em exibir sua erudição, citando seus conhecimentos através da personagem. Erudição filosófica (Schopenhauer, Nietzsche, Racine, Romain Rolland...); erudição musical (Abertura de Spohr; Pastoral-Beethoven; Strauss; Hino ao Sol-Mascagni; Siegfrid-Idill, Götterdämmerung, Canção da Estrela – Tannhäuser- Wagner, Wiegenlied, op 76-Max Reger; Lied, Körner; Mahler; Brahms; Episoden -, Max Reger...)); erudição literária (Schiller, Fausto e Werther - Goethe, Der Sturm, Schikele, Franz Werfel. Casimiro Edschmidt, Shakespeare, Minnesänger), erudição da história e política internacionais (Germanismo, Bismark, eventos da 1ª. Guerra).
E o que pretendeu com esta frase aparentemente fora de contexto?: “Há todo um estudo comparativo a fazer entre a naftalina Max Roger e os brometos em geral”. E sem vírgula entre naftalina e Max. Max Roger seria marca de naftalina? Seria uma crítica ao romantismo ainda persistente à época por que Max Roger compunha em estilo romântico em pleno século XX?
A edição do livro que li, da editora Via Leitura (série biblioteca luso-brasileira) trazia ao pé das páginas a “tradução” de uma série de palavras. Será que muitas das dessas e outras palavras usadas não seriam da Língua Geral, ainda falada em uso em muitas localidades do Brasil e que possivelmente Mário de Andrade pesquisou? Sei lá...não sei...só sei que foi assim, como diria o Chicó.
Por fim, comentar sobre a estória e personagens para quem leu este livro, como os colegas do CLS, pouco acrescentaria. Mas para quem não o leu, um firme convite: leia!
Amar, verbo intransitivo é muito mais do que uma aula de regência verbal.
quatro primeiros